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quarta-feira, fevereiro 14, 2018

O século americano

Destroços do USS Maine, Cuba, 1898.


O século americano, que poderíamos situar entre 1918 e 2018, significou a passagem de uma era industrial baseada no carvão e na máquina a vapor, iniciada entre 1760 e 1780, para uma revolução industrial baseada, não apenas no carvão e na eletricidade, mas cada vez mais no uso do petróleo e do crédito especulativo. O seu início coincide com duas tragédias europeias: a chamada Grande Guerra, e a Revolução Russa. O Tratado de Versalhes, que decidiu as reparações de guerra devidas pela Alemanha aos países que a derrotaram, e que os americanos nunca chegariam a subscrever, criou o veículo diplomático da rápida emergência da nova potência mundial e principal credor comercial e financeiro da Europa: os Estados Unidos da América.

O garrote que Ingleses e franceses apertaram para além do razoável, mesmo contra a opinião do presidente americano Woodrow Wilson, seria o principal responsável por uma nova e terrível carnificina na Europa: a Segunda Guerra Mundial. Depois de 1945, Washington e Nova Iorque tornaram-se as capitais de um grande império. Bombardeiros, nomeadamente nucleares, e uma imensa armada, flocos de milho, a 'dolarização’ do petróleo, e a arte moderna tornaram-se então sinais evidentes de uma nova potência mundial dominante.

Quando os ingleses invadiram o Iraque (otomano) em 1914, na denominada Campanha da Mesopotâmia (1914-1918), já sabiam que o petróleo abriria uma nova era industrial. Acontece, porém, que depois de 1918, e ainda mais depois de 1945, o petróleo viria a estar para a rápida expansão americana, tal como o carvão estivera para a consolidação do império britânico no século XIX até à rendição da guarda que resultaria do pesadíssimo custo material, financeiro e humano da Grande Guerra.

Entretanto, o petróleo barato, depois de um século de uso intensivo, tal como previra M. King Hubbert em 1956, chegaria ao fim. Tornou-se cada vez mais dispendiosa a sua prospecção e extração, descobrindo-se cada vez menos jazidas de grandes dimensões em cada década depois de 1970, ano em que os Estados Unidos chegaram ao pico da sua produção petrolífera: 9, 637 milhões de barris/dia. O gás e o petróleo de xisto são uma alternativa cara e de curta duração, cujos preços estão inexoravelmente dependentes do valor tendencialmente elevado de um bem precioso, cada vez raro à face da Terra, e a que foi dado um esclarecedor epíteto: “ouro negro”. A corrida ao shale oil só começou, sintomaticamente, em 2011, ou seja, três anos depois dos preços do crude terem atingido a sua cotação mais elevada de sempre: 147,27 dólares por barril, em 11 de julho de 2008.

Sem energia abundante e economicamente acessível não há grande crescimento económico, ainda que durante algum tempo seja possível mitigar o problema explorando mais intensamente a divisão internacional do trabalho, diminuindo os rendimentos laborais médios nos países desenvolvidos, incrementando as tecnologias que substituem o trabalho humano ou o tornam mais eficiente, adotando políticas monetárias e fiscais perigosas, aumentando as dívidas públicas e privadas e, finalmente, forjando estatísticas celestiais. No entanto, haverá um momento em que uma crise energética, ou de transição energética, semelhante à que atingiu a Europa na primeira metade do século XX, mas de sinal contrário, recairá não apenas sobre a economia americana, mas também sobre a economia mundial. Esse momento talvez já tenha chegado.

Depois do Brexit os Estados Unidos da América voltariam a ser a maior economia mundial, com um PIB maior do que o da União Europeia, se a China não tivesse já conseguido, em 2017, ou em 2018, ultrapassar as três maiores economias do planeta: União Europeia, Estados Unidos e Japão, ainda que permanecendo muito longe de qualquer destas em rendimento per capita.

O século americano chegou, pois, ao fim, ainda que o declínio de uma mega-potência possa durar décadas, ou até séculos, sem que tal perda de influência e isolamento relativo signifique necessariamente uma implosão. Veja-se, por exemplo, o caso da China, que, seiscentos anos depois (1415-2015) de ter construído uma segunda grande muralha à sua volta, virando as costas ao mar, regressa por fim, depois de um interregno de transição e acumulação forçada (sob a bandeira do comunismo marxista-leninista-estalinista), mas sobretudo depois de ter descoberto em 1959 enormes reservas de petróleo no seu território (Daqing), ao comércio mundial, aceitando praticamente todas as suas regras, virtudes e defeitos, para assim melhorar as suas oportunidades de êxito.

Nós continuamos, e continuaremos por muitos anos a viver sob a influência impressionante da cultura americana. Aquilo que ainda hoje nos parece uma permanente revolução cultural e tecnológica resulta de uma matriz genética dificilmente repetível: uma imensa terra quase virgem e rica penetrada por uma multitudinária ânsia de liberdade, igualdade e utopia, a que não faltaram matérias primas, algumas delas preciosas, nem energia abundante e barata.

O que é verdade para os Estados Unidos da América é parcialmente verdade para o resto do continente americano, do Canadá aos Andes, passando pelo México, Argentina ou Brasil. Em todos estes novos países nascidos da primeira metamorfose pós-colonial da era moderna existem as cicatrizes de uma espécie de desconstrução antropológica e cultural permanente.

O experimentalismo social a que nesta parte do mundo assistimos não é, porém, uma forma de radicalismo contra o conservadorismo e a inércia, nem uma qualquer forma de perversão. É antes uma espécie de evolução humana historicamente acelerada pelo movimento browniano de diferentes tribos humanas muito distanciadas no espaço-temp que subitamente se encontraram. Ao contrário do resto do planeta, onde predominam a inércia endogâmica e uma espécie de história ruminante acometida periodicamente por grandes convulsões sociais, políticas, militares e culturais, nas Índias Ocidentais predominaram ao longo de quinhentos anos o paraíso, o mistério, e por vezes o inferno em carne viva—“the real thing” (Miles Orvell, 1989). Predominaram durante todo este tempo o “conhecimento de experiência feita”, a liberdade de descobrir e o assumido risco da mudança.

A grande diferença entre a colonização americana a norte do México, e deste grande país do “novo” continente para sul, são as instituições religiosas que acompanharam as sucessivas ondas de emigração que abandonaram a Europa e outras partes do mundo (China, Japão, Rússia, etc.) em busca de uma oportunidade. No primeiro caso, a colonização e a escravização não seriam legitimadas em nome de uma  qualquer evangelização politicamente programada, centralizada, e formalmente assumida pelos invasores, enquanto que a ocupação levada a cabo por portugueses e espanhóis fora desde o início uma empreitada política abençoada por Roma e com esta partilhada. Talvez esteja aqui a principal causa da diferença dos modelos de liberdade (ou falta dela), de sociedade, e de economia que viriam a separar a América Latina Apostólica Romana, da América Anglicana, Luterana, Puritana, Ortodoxa, e em última instância politeísta onde viria a nascer e prosperar o célebre Sonho Americano.

Estados Unidos e Canadá foram e todavia são geografias de liberdade e racionalidade como não existem ainda outras à face da Terra, nem sequer na Europa ocidental, atravessada por contradições aparentemente insanáveis que recorrentemente tolhem as suas historicamente recentes aspirações de liberdade e democracia.

O fim da era petrolífera induzirá uma inevitável reorganização do Médio Oriente. Deixará então de haver razões para o ocupação estrangeira violenta desta vasta região. A guerra do gás que desde a Primavera Árabe e a guerra na Síria lançaram uma vez mais os povos da região no inferno está para durar, mas é por enquanto uma guerra pelo fornecimento de gás natural à velha Europa. Ou seja, um conflito regional. Por outro lado, o crescimento demográfico em África já começou a gerar conflitos brutais pelo domínio das grandes reservas de terras raras, petróleo e gás natural que ainda alberga. Não sabemos até que ponto serão os africanos capazes de superar as grandes dificuldades por que passam e passarão nas próximas décadas.

Tudo somado e avaliado, é de crer que muito do que nos espera até ao fim deste século vai ainda depender do que europeus e americanos forem capazes de sonhar, passado o momento de autocrítica que estão neste momento a viver.


[próximo capítulo: a arte americana]