sábado, outubro 11, 2014

A 'esquerda' não existe

Roberto Mangabeira Unger

Tirar o pó à esquerda é preciso, mas não será fácil!


Roberto Mangabeira Unger:

“A minha impressão é de que não existe no debate português nada de semelhante (1). Há o ideário dominante, com a sua cara dura e a sua cara suave, há a nostalgia estatista e nacional da esquerda dura, mas não há isto que é a radicalização democrática do vanguardismo, do experimentalismo... A grande objecção poderia ser que um projecto como este não tem base social concreta. Eu julgo que tem, que há uma maioria latente produtivista no país. O que falta é a tradução desse potencial no caminho político e no ideário programático.”

O problema é que a velha burguesia rentista portuguesa, que até 2008 mandava nos partidos e no país (vejam-se os amores de Mário Soares por Ricardo Espírito Santo e Isaltino Morais, ou a aliança imbecil entre Louçã e João Ferreira do Amaral na tentativa reacionária de regresso ao escudo), sucumbiu à pressão do FMI e do BCE, e não à pressão da 'esquerda'! A nossa 'esquerda' é uma emanação disfarçada do autoritarismo secular do país. É em geral analfabeta e prefere sempre uma boa cunha à trabalheira de pensar pela sua própria cabeça.

A nossa elite come toda no mesmo retaurante, vai à mesma praia, e guia-se por sebentas, mas só pra inglês ver!

À laia de prova do que afirmo é a ideia interessante, avançada por Roberto Mangabeira Unger, sobre a educação, mas que jamais será adotada em Portugal enquanto o atual regime prevalecer sobre os interesses profundos e estratégicos do país. Enquanto o sistema educativo português estiver nas mãos de escrevinhadores de manuais escolares e da sua editora de estimação, de um sindicato e de algumas centenas de burocratas bloqueados e manhosos, as ideias entram por um ouvido e saem pelo outro. Os ministros, como se sabe, entram vaidosos mas sem ideias, e acabam desfeitos pelo populismo reinante há décadas.

A quarta vertente “é uma transformação radical do ensino público… [É imperativo um] ensino analítico que utilize a informação de forma selectiva e aprofundada como ocasião para capacitação analítica, cooperativo na sua maneira de ensinar e sobretudo dialéctico, abordando o conhecimento herdado sempre de formas contrastantes para criar, formar, burilar, desenvolver um impulso experimentalista inovador.” Não há imaginação num ensino de tipo enciclopédico como o actual.

Uma população com mais capacidade analítica poderá mais facilmente conduzir a inovação que é preciso trazer aos serviços públicos para os tornar mais qualificados (o quinto tema). “Não basta ter o paradigma tradicional de provisão burocrática de serviços públicos padronizados e de baixa qualidade. E nem aceitar a privatização dos serviços públicos como única alternativa a isto. O Estado tem de prover os mínimos universais, mas tem de engajar a sociedade civil independente, formá-la, financiá-la, coordená-la para que ela participe, junto com o Estado, na provisão competitiva e experimental dos serviços públicos. Por exemplo, por meio de cooperativas de educadores, de médicos, de técnicos.”
—in Público, O profeta da nova esquerda.

   NOTAS
  1. Para melhor se perceber esta citação convém ler este pedaço do artigo do Público:

    Esta agenda de oito pontos termina com a recomendação de uma nova construção do Estado, “porque não existe um Estado capaz de fazer tudo isso”. Como é que se faz? Indo buscar três agendas para serem executadas em simultâneo: “Uma agenda do século XIX, inacabada, de profissionalismo administrativo meritocrático, das carreiras do Estado. O grau de profissionalismo [actual] é até menor em certos aspectos do que era no regime salazarista. Houve um sucateamento do Estado”; uma segunda agenda de “eficiência administrativa associada ao século XX” que não se pode basear “no fordismo industrial, mas nas práticas experimentais da produção nova”; e a agenda do século XXI, “de experimentalismo na administração pública”. Era útil, por exemplo, que a sociedade civil se empenhasse no serviço público, diz. “Não se sabe o caminho, o caminho tem de ser descoberto no meio do caminho.” Mas é preciso lançar um roteiro. Mais adiante, Unger apontará que “nenhum povo reforma a política, o Estado, para depois decidir o que fazer com a política ou o Estado reformados. Só reforma quando precisa reformar para sobreviver no meio de uma luta. Por isso tem de haver uma relação recíproca entre a construção do Estado e a reorientação do caminho”.

    —in Público, O profeta da nova esquerda.

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