sexta-feira, janeiro 26, 2007

Estado Social

Função Pública: o bode expiatório da corrupção política


Li hoje um editorial de Martim Avillez no Diário Económico que me pareceu sintomático da relação demencial actualmente nutrida pelo poder económico com a maioria absoluta PS. Batendo palmas à coragem militar de José Sócrates, Avillez incita-o a prosseguir a guerra contra o "monstro" humano do Estado nestes termos lamentáveis:


Ninguém fez ainda as contas ao dinheiro que custaria despedir, por exemplo, 10% dos funcionários públicos -- umas 70 mil pessoas, portanto. Isso depende dos anos de casa de cada um. Muito dinheiro? Tomando o salário médio dos funcionários públicos (pouco mais de 1200 euros) e a antiguidade média (cerca de 14 anos) as contas não são difíceis: um salário e meio por cada ano de casa dá vinte e cinco mil e duzentos euros (25 200 euros) por funcionário. Vezes 70 mil pessoas, dá 1,7 mil milhões de euros -- mais ou menos 1% do PIB nacional. Ainda parece muito dinheiro?
Eu, como a maioria dos portugueses temos vindo a ser sistematicamente atordoados com uma barragem mediática sem precendentes contra os funcionários públicos portugueses. Tudo é culpa deles: o país que não funciona, a justiça que se engana e tarda, os incêndios que alastram, o abandono escolar, a corrupção na GNR, enfim, tudo é culpa de todos eles, menos do cobrador de fraque que manda rezar missas pelas boas colheitas fiscais do actual governo socialista e, claro está, das centenas de políticos profissionais que por acaso também são funcionários públicos. Entretanto, há pessoas que morrem por falta de cuidados médicos a 180Km da capital do país, há pescadores que naufragam a meia dúzia de metros da praia com os helicópteros de socorro parados por falta de gasolina ou algo parecido, há milhares de idosos que vivem numa pobreza extrema e com escasso apoio social, há 70 mil portugueses (os novos "ratinhos" de Portugal) num vai-e-vem migratório buscando pão e queijo por terras de Espanha, voltou a haver, sem que os governos alguma vez o mencionassem, uma emigração em massa para a Europa, como não acontecia desde os anos 60.

É diante deste panorama desolador que o actual governo, pelos vistos, pretende atacar o célebre "monstro" criado por Cavaco Silva e pelos sucessivos recrutadores de boys & girls, de que o actual governo de maioria não se pode isentar, como todos sabemos. Pergunto, para quê? Ou, porquê? Mais 10 mil desempregados num país incapaz de criar empregos (pois sabemos agora que a célebre diminuição do desemprego não passou de uma cortina estatística para encobrir os 120 mil concidadãos que abandonaram o país à procura de melhores dias) não irão precisamente agravar os nossos problemas, nomeadamente de saúde e de segurança social? E para atendê-los, se o governo não quiser, como parece querer o editorialista do Diário Económico, criar uma classe de intocáveis (que pelos vistos não atormentou Cavaco Silva na sua escapadinha à India), não terá que voltar a admitir mais funcionários para que o atendimento devido se faça? Não seria mais racional e produtivo começar por definir quais são os sectores fundamentais do Estado que têm que ser defendidos e reforçados, antes de lançar um anátema universal sobre quem serve ou trabalha para o Estado? Não aconselha a prudência, qualidade essencial dos bons políticos, que só depois desta discriminação positiva, se diga então quais os serviços e funções que devem passar para a actividade privada, deixando deste modo bem claro o que norteará os critérios de rescisão negociada dos actuais contratos e vínculos profissionais? Doutro modo, quem poderá impedir a discricionaridade, as chantagens e os abusos de toda a ordem num processo necessariamente mal liderado pelas burocracias sindicais e pelos aparelhos partidários?

Eu sou dos que pensam que devemos ter menos Estado. Mas sou também dos que pensam que precisamos de um Estado mais eficiente, mais solidário, mais responsável, mais amigo do cidadão e menos ao sabor das clientelas políticas que o tomam de assalto de quatro em quatro anos.

Entretanto, o principal nesta fase da batalha movida pela actual maioria socialista e pelas corruptas agências de comunicação social contra a Função Pública é, da parte cidadã, vencer a barreira mediática apostada em confundi-la sobre as verdadeiras causas do empobrecimento do país. Já alguém mediu, por exemplo, o peso das engenharias financeiras desastrosas da Ponte Vasco da Gama, da EXPO 98, da modernização a meio gás da linha ferroviária do Norte, das SCUDs, de Cahora Bassa e dos anunciados mega-projectos insanes da Ota e do TGV Lisboa-Porto no endividamento do país e do Estado? Não. E porquê, senhores economistas?

O primeiro mito a desfazer é o de que temos funcionários a mais. Para tal, basta passar os olhos pelo quadro relativo à situação europeia. Elucidativo: num conjunto de 19 países comunitários, apenas o Luxemburgo e a Espanha têm uma administração pública menos pesada em número de funcionários que nós.

Fonte: EUROSTAT

Entretanto, vale a pena ler esta ponderada e muito esclarecedora entrevista dada por Juan Mozzicafreddo ao jornal Público, para arrefecer a histeria promovida pela maioria dos falidos média portugueses.

O Estado continua cativo de interesses particulares
Entrevista a Juan Mozzicafreddo por Clara Viana (Revista Pública de:9/7/006)

P- É uma das poucas coisas que se podem dar como certas em Portugal: ter um Governo que anuncia reformas da administração e sindicatos que, em resposta, avançam para a greve. No passado dia 6 realizou-se mais uma. É uma condenação ou podia ser de outro modo?

R- Diria que se está condenado a ser assim na medida em que se tem de facto de reformar a administração pública. Porque alguma coisa vai ter de se reformar se quisermos manter o actual modelo social. Ora, qualquer reforma, de qualquer sector, afecta os sindicatos porque afecta os seus clientes. Os sindicatos têm legitimidade para negociar, para opinar, mas são apenas um sector da sociedade. A propósito destas reformas há quem fale de revolta das pessoas. Bom, eu diria antes revolta dos sindicatos. Claro que estes representam pessoas, mas hoje menos do que antes e a verdade é que se tornam por vezes conservadores. Não é legitimo que se argumente que o que foi acordado noutras situações não pode ser mexido nunca mais.

P- São os chamados direitos adquiridos.

R- Não existem direitos adquiridos, nunca existiram. Há direitos que são mais estruturantes, como o direito à opinião, à informação, à associação, o conjunto dos direitos cívicos e políticos, mas os direitos de retribuição, os que têm a ver com a recompensa do indivíduo, ou a distribuição da riqueza, são sempre contingentes. Dependem das expectativas, das escolhas, do orçamento. Domínios em que não pode haver nunca algo que esteja adquirido para sempre. O que aqui está em causa são direitos contingentes que dependem das escolhas e das possibilidades orçamentais, mas também da equidade.

P- Equidade entre quem?

R- Em relação aos restantes trabalhadores, a administração pública tem usufruído de alguns privilégios: No que respeita à idade da reforma; em relação ao horário de trabalho, que é menor; e na garantia de não despedimentos. Até 1987, os funcionários públicos também não pagavam impostos. Tudo isto foram direitos negociados que tiveram alguma justificação na época, devido aos baixos salários que então se recebia na administração pública. Mas há aqui uma situação de alguma injustiça em relação aos outros trabalhadores e também em relação a quem paga, ao contribuinte. Soube há pouco tempo que existiam 1400 sindicalistas que são pagos com os meus impostos apenas para serem sindicalistas. O que é inaceitável. Temos assim esta situação em que os sindicatos da função pública vão para a greve, defendendo um privilégio, um benefício que têm em relação a outros e até mesmo benefícios particulares. E com isto perdem legitimidade.

P- Como é que definiria a administração pública em Portugal hoje?

R- Diria que maioritariamente é uma administração pública pouco modernizada, pouco flexível, muito desorganizada e com algum particularismo institucional. Isto quer dizer que muitas decisões não são transparentes, sobretudo aquelas que envolvem mais recursos colectivos. E às vezes não são isentas.
Há muito clientelismo, há muito corporativismo, negoceia-se muito nos bastidores. A administração pública portuguesa é muito clientelar. Por outro lado, no geral presta pouca atenção ao público. As pessoas são mal atendidas, os prazos não são cumpridos. Há uma desconfiança em relação ao utente, que aliás é recíproca.
Mas existem também bolsas de excelência, instituições que trabalham bem, que são uma referência. A Loja do Cidadão foi um exemplo.

P- E um êxito...

R- Foi um êxito por duas ordens de razões: os serviços estão concentrados no mesmo lugar e a loja está aberta das oito da manhã às oito da noite. É um procedimento que se poderia generalizar e que me leva aliás a fazer uma sugestão aos sindicatos e ao Governo. Dizem que há muita gente na administração. Não sei se há ou não. Não se sabe. Pode ser que nalguns sectores haja e noutros não. Mas se há muita gente, qual a razão de termos uma administração que fecha as portas às 16 horas? Porque é que não havemos de ter uma administração aberta das nove às nove da noite? O que podia ser feito através de dois turnos, sete horas de trabalho em cada ou seja, sem aumentar os horários a ninguém. Os funcionários continuariam a trabalhar as suas sete horas e o serviço ao cidadão era ampliado.

P- Há quem defenda que só haverá melhor administração se esta seguir o modelo e a lógica de gestão do sector privado.

R- O que se diz é que a gestão privada gere melhor, o que só por si não é correcto. A gestão privada tem uma lógica da rentabilidade, da eficiência e da eficácia, do lucro e da concorrência. A gestão pública tem outra lógica. Tem primeiro que tudo a lógica da democracia. Tem, em segundo lugar, a lógica das políticas públicas. E em terceiro, a lógica da equidade do tratamento e dos recursos colectivos. Mas isso não quer dizer que não seja eficiente.
Uma administração pública tem que ser eficiente e tem que ser equitativa. Porque uma coisa sem a outra não dá. Por exemplo, a política fiscal em Portugal tornou-se mais eficiente nos últimos anos. Cobram-se mais impostos, a máquina está mais atenta e eficiente nos instrumentos de recolha de dinheiro, mas continua a ser injusta porque são poucos os que pagam impostos. E então qual é a minha posição? É a de que não quero uma máquina eficaz porque já sei que é a mim que virão buscar mais e não a outro. Mas se houvesse uma política fiscal justa, então seria natural tornar-me adepto de uma máquina eficaz.

P- Será que, no geral, as pessoas sentem esta reforma como justa?

R- Ninguém gosta que se lhe imponha mais trabalho ou um congelamento de salários ou de progressão na carreira, quando tal não é aplicado também a quem está ao lado. Qual é a justiça, para um funcionário público, de poder vir a ter uma progressão mais rápida na carreira em compensação por um esforço maior, quando a um gestor público é garantido um bónus de 100 mil euros por ano porque a sua empresa, que é pública, tem rentabilidade?
Diria à partida que é uma situação injusta: para o funcionário público, que não tem essa benesse; mas também para o contribuinte, para o cidadão, porque uma empresa pública que tem grande rentabilidade deveria reverter esse ganho para diminuir os preços ao público e não para aumentar o salário do gestor.
A não ser que haja este princípio pragmático: O.K., há um senhor que está a ganhar muito, mas o que ele faz reverte para o contribuinte. Por exemplo, não me importaria nada que o senhor da Caixa Geral de Depósitos ganhe como ganha se quando for pedir um crédito este seja mais baixo do que no Totta ou no BPI. Porque se é igual, qual é o meu interesse no caso? Perante estas injustiças, as reformas acabam sempre por fracassar.

P- É outra vez também uma questão de equidade.

R- Uma reforma deve ser legal e legítima. Este Governo adoptou já algumas medidas que apontam para um bom caminho. Há já algumas nuances no sentido de uma maior moralidade. Se o critério da equidade for adoptado haverá muito mais cidadãos a aceitar a legitimidade de uma reforma.

P- São numerosos os estudos onde se sublinha que um processo de reforma da administração só pode ser levado por diante com êxito se for feito com as pessoas. Por parte do Governo, este está a ser um processo negociado.

R- Este Governo tem um projecto eleitoral que as pessoas sufragaram, votaram. E esse projecto integrava a reforma da administração pública. Ora, a legitimidade democrática é muito mais importante do que a negociação sindical. Porque o que temos aqui são dois tipos de legitimidade: a democrática, processual; e a funcional, que inclui aquilo que se negoceia entre parceiros. A negocial não pode ser superior à processual sob o risco de cairmos no corporativismo. E a verdade é que a nossa sociedade é ainda muito corporativa.
Dito isto, reafirmo que as pessoas devem ser integradas na reforma da administração pública. Que há um interesse nisso, porque uma grande parte delas sabe como melhorar a administração. E é bom utilizar esse saber. Por outro lado, ao participarem, ao serem integrados nas reformas, ficam mais motivadas, o que faz que o processo seja mais bem aceite e também mais eficaz. Mas é preciso que não nos enganemos: há muita gente que não quer a reforma, porque perde posições com ela. Uma reforma é sempre contra uma situação de status quo.

P- Menos Estado, menos funcionários públicos, terá de ser essa a meta?

R- Penso que o Estado dificilmente será menor. Pode ser melhor, mais democrático, mais transparente, mais eficiente, mas dificilmente será menor. Porque os problemas são cada vez maiores. A administração pública que temos resulta do papel que atribuimos ao Estado. E o papel que se atribui ao Estado na Europa não é igual ao que se atribui na Argentina, nos Estados Unidos ou na Indonésia.
Em Portugal, a função pública aumentou a seguir à revolução de 1974 porque o Estado alargou as suas funções. Sabemos isto, mas não sabemos exactamente quantos funcionários temos. É o nosso primeiro problema. O único recenseamento da administração pública foi feito em 1999. Então haveria 718 mil funcionários, hoje parece que são 740 mil, a avaliar pelos números da caixa geral de aposentações. Já a OCDE fala em 770 mil. Digamos, para simplificar, que existirão uns 750 mil.

P- É muito para um país como Portugal?

R- Portugal é um dos poucos países da Europa dos 15 que mantém uma progressão no que respeita ao custo da administração pública. Este custo é calculado por comparação ao PIB. Só que nós estamos a falar, nestes dados, do PIB formal ou seja, daquele que é declarado. A função pública portuguesa custa grosso modo 20 mil milhões de euros. O nosso PIB é de 160 mil milhões de euros. O que dá os 15 por cento a que se chegou em 2000. Ora, segundo um estudo do Banco de Portugal publicado há dois anos, a economia informal em Portugal corresponde a 23 por cento do PIB. Se adicionarmos esta economia informal ao PIB real, a percentagem do custo da função pública baixa para os 11.9, aproximando-se assim muito mais da média da Europa do 15 que, em 2000, estava nos 10,5 por cento.
Portanto existe também também um problema de contabilidade mal feita. Dirão que tal também é válido para outros países, que em todos há corrupção.É verdade, mas não ao ponto de chegar aos 23 por cento do PIB. A média na Europa está nos oito, nove por cento.

P- O problema então não é ter gente a mais?

R- Não. É ter gente que trabalha de maneira desorganizada, dispersa, com horários muito reduzidos e concentrados.É um problema de cativação do Estado por interesses particulares. É um problema de escolhas e do que se entende de facto como sendo o interesse público. Diria em jeito de metáfora que o interesse público é como o amor, depende das circunstâncias, do tempo, dos parceiros. Ou seja, não há um interesse público definido para sempre. Nada é adquirido. Como defini-lo então? Avaliando a função social, a função de integração, a função de mérito e a função de custo. Justifica-se, por exemplo, que o Estado detenha a TAP? Eu diria que não. E a EPUL? Para quê, se não tem casas mais baratas, se é de difícil acesso e se não regula o mercado, embora fosse essa a função para que foi criada? É igual a uma qualquer outra empresa privada, só que na EPUL estarei a pagar duas vezes: pela casa e pelo funcionário.

Perfil
Juan Mozzicafreddo, 61 anos, É coordenador científico do mestrado em Administração e Políticas Públicas do ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, que vai entrar na oitava edição.
De origem argentina, fez a agregação em Sociologia, no ISCTE. É doutorado em Ciências Políticas pela Université de Montpellier I. Fez um mestrado, também em Ciências Políticas, na Université Catholique de Louvain. A licenciatura, na mesma área, é da Universidad del Salvador.
Investigador do Centro de Estudos e Investigação de Sociologia do ISCTE, é autor, entre outras obras, de "Estado - Providência e Cidadania em Portugal", "Gestão e Legitimidade no Sistema Político Local" e "Administração e Política Perspectiva de Reforma da Administração Pública na Europa e nos Estados Unidos".

OAM #166 26 JAN 2007

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