segunda-feira, agosto 21, 2006

Carrilho 3

Capa de Sob o Signo da Verdade. Ed. Dom Quixote

A arena da verdade

Acabo de ler, em segunda edição, o livro de Manuel Maria Carrilho, onde o próprio explica as causas da sua derrota na corrida eleitoral para a presidência da Câmara Municipal de Lisboa, cuja vitória viria a caber ao discreto político do PSD, Carmona Rodrigues. O modo directo como denuncia o “polvo” e a “matilha” de Gresham que se atiraram à sua candidatura autárquica, sem regras nem tréguas, é convincente. Percebe-se ao longo do livro como, de facto, a corrupta imprensa que temos se prestou ao linchamento mediático do candidato do Partido Socialista. A demonstração é meridianamente clara e vale a pena ler o livro só por isto.

Como escrevi noutra ocasião, os nossos média convencionais são empresas falidas, que empregam mão-de-obra precária e se subsidiam intermitentemente nos projectos de fabricação de consensos mais idiotas, ou mais próximos do poder económico e político. Eu zapeio um máximo de duas horas de televisão por dia, detendo-me algum tempo no Jornal das Nove, apesar dos salamaleques cómicos do Mário Crespo, e passando invariavelmente pelas notícias da Sky, BBC e Bloomberg. Vi irregularmente Sete Palmos de Terra e Os Sopranos, aprecio a comédia britânica (The Office, etc.) e abomino cada vez mais a TV Cabo e os seus pseudo-canais repetitivos. Vejo e ouço com alguma regularidade o Marcelo Rebelo de Sousa, e mais nenhum outro comentarista, na medida que este me parece o mais arguto e venal clown da nossa praça televisiva. Não vejo futebol, nem concursos, nem televonelas, nem touradas! Deixei há muito de comprar jornais portugueses, na medida em que continuam a sujar as mãos, raramente informam, continuam a dedicar-se soturnamente à manipulação incestuosa ou encomendada da informação e opinam miseravelmente. Tendo a Internet à mão, para que preciso do Expresso, do Público ou do Diário de Notícias? Para nada, de facto. Ora bem, é neste contexto que as mensagens de Manuel Maria Carrilho, quase sempre cheias de ruído, se não mesmo na forma pura e simples do boato, têm viajado até mim.

O seu programa eleitoral não me chegou às mãos, nem me chegou aos olhos, nem me chegou aos ouvidos. Passou-se exactamente o mesmo com os programas dos outros candidatos. O problema é que se nada havia a esperar do PSD, que acabava de provar a sua completa incapacidade para governar Lisboa e o País inteiro, e se nada de relevante poderíamos esperar dos dois partidos da esquerda minoritária — a não ser que cumprissem o seu dever de vigilantes democráticos no interior de uma instituição consabidamente macrocéfala, imbecil e corrupta —, pelo contrário, do candidato que corria pelo partido que poucos meses antes havia conquistado uma notável maioria absoluta, havia a maior das expectativas.

Por conseguinte, se o que sobressaíu da candidatura de Carrilho foram os faits divers, e não as suas ideias, algo terá falhado no quartel-general da sua campanha, para além da voragem canina dos paparazzi das agências noticiosas e dos venais jornalistas, editores e directores da provinciana e terceiro-mundista imprensa escrita e audiovisual que temos. Estou de acordo com a autocrítica que Carrilho faz no seu livro, num esforço de ultrapassar um episódio certamente dramático e triste da sua inesperada, intempestiva e meteórica carreira política.

Esta autocrítica está explicada através de seis factores que propiciaram o desastre e seis erros que contribuiram fatalmente para o mesmo.

São estes os factores: a imagem polémica do candidato; o regresso do publicitário Edson Athaíde a Portugal com a missão de orientar a sua campanha; o cansaço político dos eleitores depois de todas as peripécias que se sucederam ao abandono de António Guterres (que para todos os efeitos detinha uma maioria relativa para governar); a manipulação dos média por intermédio da agência noticiosa de Cunha Vaz (que entretanto assumira o encargo de promover Carmona Rodrigues); a vitória tíbia de Marques Mendes no Congresso do PSD, para quem uma derrota autárquica em Lisboa e no Porto poderia ser uma machadada antecipada no seu inglório consulado à frente do destroçado PSD pós-Barroso e sobretudo pós-Santana; e finalmente, o impacto negativo da nova austeridade governamental sobre a sua candidatura, que levaria seguramente alguns eleitores a castigar o PS, ou abstendo-se ou votando, por exemplo, no Bloco de Esquerda, ou mesmo no PCP.

E os erros foram, segundo Carrilho, os seguintes: não ter insistido na coligação de esquerda com o PCP; ter começado a sua campanha cedo de mais; não ter recorrido a uma agência de comunicação, quanto mais não fosse para compensar defensivamente a acção da Cunha Vaz; o voluntarismo e o vanguardismo conceptuais da sua campanha; o desafio que dirigiu ao lóbi da construção civil e da especulação imobiliária, traduzido no anúncio de uma aposta mais firme na reabilitação, contra o predomínio escandaloso das novas construções; e ainda, uma aposta errada no modelo dialéctico da campanha, a qual, escreve, deveria ter sido mais adversarial e menos propositiva.

Estou, em geral, de acordo com este balanço. Há, porém, mais algumas causas fundamentais para o insucesso de Manuel Maria Carrilho, que o mesmo parece ignorar, ou às quais não confere peso suficiente. A primeira, diz respeito à óbvia falta de habilidade como abordou e geriu o dossiê Bárbara Guimarães (além de sua mulher, Bárbara é uma estrela da televisão e da moda, o que exigiria sempre uma estratégia muito clara e transparente no uso da sua imagem, além de especiais cuidados na conjuntura hostil que se montou). A segunda, decorre dos efeitos nefastos que os coelhos do aparelho socialista (Miguel Coelho e Jorge Coelho) tiveram na marcha dos acontecimentos (o primeiro, manifestamente sabotando o apoio da Distrital do PS, e o segundo, desviando as atenções para Bárbara Guimarães no jantar da FIL de 13 de Julho). A terceira, deriva da pobreza dos materiais de comunicação utilizados (em vez de jornadas apressadas e inconsequentes e de excesso de vedetas interessadas na sua vitória, teria sido bem mais produtivo usar convenientemente a Internet e acções de rua criativas, como canais alternativos ao carnaval mediático que se montara contra si e contra a campanha do PS). A quarta, prende-se com a falta de ligação aos actores aparentemente secundários e invisíveis da cidade (refiro-me às associações e organizações sociais e culturais de Lisboa, que poderiam, se abordadas no decurso da própria formação das ideias programáticas, ter tido uma significativa influência no resultado final da eleição). A quinta, decorre da confusão entre a necessidade de transmissão de uma visão para Lisboa (“Mudar Lisboa” soou pretencioso, teria sido preferível propor-se, realisticamente, Melhorar Lisboa) e as medidas concretas de um programa de acção (onde anunciar a travagem do lóbi da construção, ou a redução para metade do contingente automóvel que todos os dias invade a capital foram duas ingenuidades de palmatória!) Finalmente, a forma dos argumentos do candidato foi frequentemente agressiva (esquecendo-se que os portugueses, em geral, não gostam de excessos de frontalidade e preferem, quase sempre, a ironia e as estratégias indirectas da oratória), e assim, Manuel Maria Carrilho não desfez, antes reforçou, uma certa imagem negativa que os média (mas também ele próprio) foram construindo de si ao longo do tempo. Neste contexto, o não aperto de mão a Carmona Rodrigues foi, todos o perceberam, fatal ao candidato do PS.

E no entanto, Manuel Maria Carrilho, que precisa urgentemente de rever os seus protocolos de comunicação e a sua retórica, continua a ser uma referência importante para a nossa democracia e uma possibilidade real para melhorar Lisboa. Teve a coragem de expôr a pobreza confrangedora do aparelho partidário do PS (que não é pior que os outros, entenda-se). Teve a coragem, a par de João Cravinho, de denunciar a corrupção instalada em Portugal. Teve a coragem de atacar sem medo os mastins da informação e os mercenários da opinião. Tem uma visão, no essencial, ajustada e justa para o nosso país. Não será nunca o seu fraquinho pela meritocracia, ou o bom gosto, que toldarão o seu desejo manifesto de lutar por uma sociedade menos estúpida, menos corrupta e mais inteligentemente solidária. Falta-lhe apenas aceitar que o lugar da verdade é uma arena, e não uma revelação.

OAM #138 21 AGO 2006

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