domingo, novembro 19, 2006

Lisboa-Moscovo

Portugal: transiberiano e transatlântico
“[...] in early 2009, George W. Bush will fade into the wilderness, remembered (if we bother) for being the front man for the mother of all defeats — in Iraq, in the world-system, and at home for the Republican party.” — Immanuel Wallerstein Commentaries, Mother of All Defeats
Na Sexta Feira passada, dia 17 de Novembro, o Diário Económico anunciava na respectiva capa: “Russos da Gazprom entram no capital da Galp”. O sobressalto foi geral. Muito antes do previsto e acordado, a petrolífera nacional, que o Estado português foi alienando em troca de receitas preciosas para diminuir a dívida pública, prepara-se para admitir um novo parceiro estratégico na sua estrutura accionista. Nada mais nada menos do que o gigante russo do gás natural, que o bruto Putin salvou da rapina arquitectada pelos oligarcas do ébrio Ieltsin em articulação criminosa com a irmandade anglo-saxónica do petróleo.

Todos podemos imaginar que uma tal jogada, ou ensaio experimental, só poderia ter lugar como provocação e na expectativa de uma derrota em toda a linha da estratégia de quem anunciou a bondade e inevitabilidade de um Novo Século Americano. A família Bush e o carabineiro Cheney devem ter mandado alguém telefonar para Lisboa, indagando se a notícia do Diário Económico tinha mesmo fundamento ou se era uma brincadeira de mau gosto. Sócrates deve ter tremido. Mas, bem vistas as coisas, o Sr. Américo Amorim está no seu papel, e neste caso, a estratégia que promove apenas pode fortalecer a posição portuguesa em vários tabuleiros do xadrez político actual:
— aumenta o potencial de fornecimento de um dos principais bens energéticos deste século;
— diversifica, a prazo, a nossa dependência energética: Argélia, Nigéria, Rússia, Irão...;
— contribui para a muito necessária recuperação da estratégia atlântica do país (portos de Sines, Setúbal, Lisboa, Figueira da Foz, Aveiro e Leixões);
— e dá o mote para uma redefinição da geometria estratégica portuguesa, não apenas mais ambiciosa, mas sobretudo capaz de evitar uma simbiose suicida com a Espanha.

Ligar por terra Portugal ao resto da Europa significa sempre pedir direito de passagem à Espanha. Mas se o fizermos sabendo e demonstrando que temos as vias marítimas e aéreas abertas e bem oleadas, então nada teremos a temer do sempre arrogante iberismo castelhano.

Precisamos de diversificar as nossas parcerias estratégicas para lá dos nossos tradicionais aliados (EUA e Reino Unido), dos quais já só podemos esperar pouca ajuda e muitos problemas. Além do mais, é bem provável que os Estados Unidos, à beira de uma crise económica, social e política sem precedentes na sua história, se fechem sobre si mesmos, pondo de algum modo fim à globalização tal como a conhecemos hoje(1). Neste cenário, uma América repentinamente humilhada e atingida pela psicose securitária pode tornar-se numa ameaça perigosa à paz mundial(2). Pode, pelo contrário, adaptar-se aos futuros equilíbrios geo-estratégicos, fazendo algumas jogadas de antecipação. Por sua vez, a União Europeia, que continua sem liderança credível, depende energeticamente do Irão e da Rússia, o que não pressagia nada de bom. Putin, como se vê, parece acreditar que o Século Russo pode estar ao virar da esquina!

Quanto a Portugal, que deverá prever turbulências e mesmo estagnação no processo de fortalecimento político da União Europeia, tem que começar a pensar pela sua cabeça, fazer as suas apostas e ousar. Quem, para além da Alemanha, poderá estar verdadeiramente interessado em investir no fortalecimento estratégico de Portugal, nomeadamente por causa do seu óbvio potencial atlantista(3)? Já não são os Estados Unidos da América, nem sequer a velha Inglaterra. A Espanha, muito menos. Pois sim, é mesmo a Rússia de Putin e do nacionalista que se lhe seguirá.


Notas
1 — Sobre a crise sistémica mundial vale a pena ler o Boletim Europe 2020.
The US consumer, i.e. the US middle class, basically becomes insolvent, victim of overwhelming debt, a negative rate of saving, the bursting of the real estate bubble, the rise of interest rates and the collapse of US growth. All these elements are dependent, and mutually reinforcing, to plunge the United States, starting from the end of 2006, into an economic, social and political crisis without precedent?

2 — Sobre a tentativa americana de impedir a emergência de uma nova Rússia à frente da Eurásia, vale a pena ler, além do fundamental The Grand Chessboard, de Zbigniew Brzezinski, The Emerging Russian Giant Plays its Cards Strategically, de F. William Engdahl.
On October 10 [2006], Russian President Vladimir Putin flew to the German city of Dresden for a summit on energy issues with Germany's Chancellor Angela Merkel. On the agenda were proposed plans to more than double German import of Russian natural gas. Putin told the German Chancellor that Russia would 'possibly' redirect some of the future natural gas from its giant Shtokman field in the Barents Sea. The $20 billion project is due to come online 2010. Putin's Dresden talks followed an earlier summit in Paris in late September with Putin and French President Chirac and Merkel. A week after his Dresden talks, the Indonesian Navy Chief of Staff announced a remarkable shift away from that country's traditional purchases of NATO military equipment. Indonesia will buy twelve modern Kilo-Class and Lada-Class Russian submarines. Indonesia cited advantages of cost and reliability over NATO French or German equivalents.

3 — O transporte marítimo de matérias-primas, de combustíveis, de produtos transformados e semi-transformados, e mesmo de pessoas, será cada vez mais importante no futuro. A Europa Ocidental encontra-se numa situação de dependência extrema do petróleo e gás natural oriundos da Rússia e do Irão, da Argélia, do Iraque, do Mar Cáspio e do Médio Oriente. Necessita, por isso, de uma opção atlântica de recurso para a sua segurança energética (de que Lisboa poderá vir a ser a respectiva placa giratória), seja na direcção do Golfo da Guiné —Cabo Verde (sobretudo devido ao seu interesse militar), São Tomé e Príncipe, Nigéria, Angola—, seja na direcção da América do Sul, cuja autonomia estratégica depende cada vez mais de alianças fortes com a Eurásia; seja para a consolidação de pontes físicas mais longínquas, nomeadamente com a China e a India (as quais precisam, tal como a Europa Ocidental, de uma boa escapatória à dependência do vasto império energético russo. Finalmente, Lisboa está nas melhores condições para servir de amortecedor diplomático entre os Estados Unidos e o actual movimento das placas geoestratégicas globais.

PS — Juro que não recebi um Euro do Amorim para escrever o que acabo de assinar!

OAM #153 18 NOV 2006

sexta-feira, novembro 17, 2006

Baixa Chiado


Plano Baixa-Chiado põe fim à coligação PSD-CDS na Câmara Municipal de Lisboa


Os erros fatais de Maria José Nogueira Pinto

I
Começar pela velha associação entre sector público (falido) e sector privado (quase sempre clientelar e especulativo), em vez de apostar por uma relação transparente entre o sector público, o sector privado inovador e a cidadania (freguesias, bairros, associações de vizinhos, comunidades profissionais, económicas, culturais, etc.)

solução errada: sector público+sector privado
solução certa: sector público inovador+sector privado+cidadania

II
A dita visão, a que chamou nova atractividade, assente em 4 idiotias conceptuais pseudo- estruturantes:

1) “UMA CENTRALIDADE POLÍTICA E INSTITUCIONAL COM FUTURO NA GLOBALIZAÇÃO: UM NOVO ‘TERREIRO DO PAÇO’”

Erro de base: centralidade e globalização são duas ideias antitéticas e por isso não fazem sentido. Metade dos ministérios deveriam ir para Almada...

2) “UM MOTOR DE CRIAÇÃO DE EMPREGO QUALIFICADO: UM PÓLO ESPECIALIZADO DE SERVIÇOS NA ECONOMIA BASEADA NO CONHECIMENTO”

Erro de base: a nova economia do conhecimento é por definição descentralizada (deslocalizada), multipolar, rizomática e em rede, alimentando-se de uma miríade de motores micrológicos, com baixa intensidade energética e uma muito ligeira pegada ecológica. A economia electrónica é subterrãnea e ubíqua...

3) “UMA CENTRALIDADE EMPRESARIAL ESPECÍFICA: UM ESPAÇO DIFERENCIADO DE ACTIVIDADES FINANCEIRAS”

Erro de base: a globalização económica e financeira actual (embora ameaçada a curto prazo) é uma realidade caracteristicamente imaterial e ubíqua, pelo que mais esta asneira conceptual deixa de fazer qualquer sentido. Além disso, a haver um novo centro financeiro, deveria ir para o buraco da Lisnave.

4) “UMA PROPOSTA INOVADORA DE ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO E DO TEMPO: UM ESPAÇO DE EFICIÊNCIA COLECTIVA, ORDENADO E ORGANIZADO, SUJEITO A MULTIUTILIZAÇÕES COM HORÁRIOS ALARGADOS E CAPAZ DE GERIR O SEU CICLO DE VIDA”

Erro de base: aqui nada se propõe que não já exista (excesso de regulamentação, nenhuma fiscalização, nenhuma penalização). Por outro lado, expandir a actual tendência de alargamento e diversificação dos horários comerciais a toda rede comercial da zona (o tal grande centro comercial aberto) não vai resolver coisa alguma, pois o busílis da questão está em saber como seria possível tornar a mobilidade e convivialidade na Baixa-Chiado mais confortável e segura do que a mobilidade e convivialidade, por exemplo, no CC Vasco da Gama. Como se sabe, isto depende de uma recuperação radical do espaço público, entretanto rendido e vendido à circulação automóvel e à especulação imobiliária.

III
O famoso Plano Baixa-Chiado não tem pés nem cabeça. Faz seguramente sentido para capitais inquietos, empresas de obras públicas, construtores civis preocupados e empresários de arquitectura mais ou menos vorazes.

Em primeiro lugar, pela sua crassa debilidade conceptual. Não contém um grama de sutentabilidade pós-carbónica!

Em segundo lugar, por ser um monte de palha retórica do qual podemos extrair quase tudo e o seu contrário. Por exemplo: transformar a Baixa-Chiado num lugar inviável para 90% dos pequenos negócios ali instalados.

Em terceiro lugar, pela sua óbvia discricionariedade. Porquê a Baixa Chiado, e não o eixo Martim Moniz-Areeiro-Aeroporto?

Em quarto lugar, por ser uma visão medíocre e tacanha dos graves problemas que afectam a cidade-região de Lisboa.

IV
Um Plano Baixa-Chiado não faz qualquer sentido. O que faz falta, e muito, é um pensamento integrado sobre a região de Lisboa e Vale do Tejo, do qual decorram medidas urgentes e drásticas de mitigação dos graves problemas económicos, energéticos e de mobilidade que aí vêm.

O elemento essencial de qualquer política urbana destinada à cidade-região de Lisboa terá que decorrer necessariamente do entendimento profundo da actual matriz de mobilidade regional, e do que teremos que fazer (muito rapidamente) para inverter a lógica de sub-urbanização que, há mais de 40 anos e sobretudo nos últimos 20 anos, conduziu à falência económica, demográfica e social da capital do país.

A crise sistémica global, que já começou e será progressivamente piorada pelas crises energética, climática e dos principais recursos (nomeadamente alimentares), permite antever um panorama de agravamento acelerado da actual crise orçamental e institucional dos municípios (1) das duas principais regiões urbanas do país. Daqui decorre que nada poderá ser feito sem o concurso activo dos cidadãos, e que para isto, fará falta um enorme esforço político democrático, conhecimentos actualizados (não o bolor conceptual que infesta o estudo da senhora vereadora, por boas que sejam as suas intenções), muita transparência (mão pesada sobre os corruptos) e grande imaginação.

Se tivessem lido bem os principia d'o Grande Estuário, apresentados como plataforma aberta de trabalho em 1 de Maio de 2005, teriam evitado esta espécie de Ota à escala municipal; teriam poupado tempo e dinheiro e Lisboa não estaria, como está, sem governo municipal digno desse nome. Na verdade, só eleições antecipadas poderão trazer alguma esperança à capital. O falanstério partidocrata que rege a actual desbunda autárquica da principal cidade do país tem que ser travado quanto antes, para bem dos alfacinhas e da cidade-região de Lisboa.



Notas
1 — A dívida acumulada da Câmara Municipal de Lisboa é de 1000 milhões de euros, sendo a dívida de curto prazo a fornecedores da ordem dos 200 milhões de euros. Se os consultores recomendam a venda de património (em vez duma inadiável racionalização dos serviços) para sanear esta situação, tal como o Estado central tem vindo a alienar boa parte dos sectores estratégicos do país, talvez fosse bom apressarem-se. É que o crash imobiliário nos EUA e o melting down do dólar vão provocar um autêntico maremoto financeiro mundial, de que a economia portuguesa dificilmente escapará. Vender terrenos e imóveis em 2007? Um sonho que não passará de ilusão. Como vai Lisboa então pagar as suas dívidas? Alienando os terrenos da Portela a Stanley Ho?! Apostar numa Baixa-Chiado de luxo não passa de ilusão pindérica.
2 — O programa da RTP 1, Prós e Contras, de 2006/12/11, sobre a crise no município de Lisboa mostrou cinco coisas: que Carmona Rodrigues é um pau mandado do PSD — sem estilo, sem estratégia e desconhecendo escandalosamente os seus próprios dossiês; que Maria José Nogueira Pinto precisa de melhores consultores; que Ruben de Carvalho deveria ceder o seu lugar a um militante jovem e mais bem preparado; que Sá Fernandes precisa de tomar um Valium antes de ir à televisão (mas também de melhores consultores); que Manuel Maria Carrilho poderia regressar como uma boa solução para Lisboa e, finalmente, que as clientelas partidárias andam cada vez mais preocupadas com o futuro. [2006/12/12]

Referências
Documento Plano Baixa Chiado (zip 5,7 Mb)

OAM #152 17 NOV 2006

segunda-feira, novembro 13, 2006

Aeroportos 9

Tejo: nova travessia
in Rui Rodrigues: Como é que o governo vai descalçar esta Ota?

Tejo: nova travessia


Não sabemos se algum dia haverá oportunidade para construir uma quarta ponte sobre o estuário do Tejo, aquela que faria da CRIL uma verdadeira circular, em vez da semi-circular actual, cruzando o rio, na zona de Algés, em direcção à Trafaria. O que continua a parecer evidente é a necessidade de uma terceira travessia do rio, se quisermos realmente levar por diante uma ligação ferroviária rápida entre Lisboa e Madrid. No cenário imaginado pel'o Grande Estuário, esta ponte deveria unir o Barreiro a Chelas. Vale todavia a pena ponderar nas objecções de Rui Rodrigues a esta opção, expostas num PDF destinado a sugerir ao governo que cure a sua manifesta miopia (e interesses mal disfarçados) em matéria de transportes.

Segundo Rui Rodrigues e José Tudella a nova ponte a construir deveria seguir parcialmente sobre o rio, junto à ponte Vasco da Gama, aproveitando o corredor do Montijo, submergindo depois em túnel na zona onde o rio apresenta baixa profundidade. O impacto ambiental desta solução seria quase nulo devido à sua localização, não comprometeria a funcionalidade estratégica do Porto de Lisboa (um porto de águas profundas cujo valor tenderá a aumentar com a importância crescente dos transportes marítimos nos cenários das economias pós-carbónicas), evitaria os custos tremendos de projectar uma ponte parcialmente assente em pilares fixos a grande profundidade, e acabaria de vez com a peregrina ideia de construir um aeroporto internacional numa zona de cheias, quando já todos sabemos o que as alterações climáticas irão provocar, por todo o planeta, em sítios como a Ota.

No plano aeroportuário, as actuais previsões de crescimento estão obviamente inflaccionadas, pois não atendem a quatro factores que irão concorrer para o abrandamento da pressão sobre a Portela:

— a diminuição, num futuro relativamente próximo, do número de viajantes que sobretudo optará, em detrimento do avião, pelas ligações ferroviárias entre Lisboa e Porto e ainda pelas ligações ferroviárias entres estas duas cidades-região e a Espanha;

— a crise previsível das chamadas companhias de bandeira por efeito das subidas imparáveis dos preços dos combustíveis e dos custos da segurança aeronáutica e aeroportuária associados, bem como da concorrência, muito difícil de combater, provocada pela nova lógica económica das companhias Low Cost;

— o crescimento das companhias Low Cost dispostas a operar em estruturas aeroportuárias austeras, cuja lógica intermodal e integradora veio afectar dramaticamente as estruturas da aviação comercial tradicionais, altamente subsidiadas pelos governos nacionais, a quem a Comissão Europeia exige, entretanto, que se deixem de paternalismos insustentáveis;

— a impossibilidade manifesta de Lisboa desafiar o verdadeiro hub intercontinental em que se transformou a região de Madrid, buscando no Longo Curso uma alternativa ao mercado de Médio Curso, irremediavelmente perdido para as Low Cost.

A actual pressão da procura tenderá pois a diminuir e não a aumentar no nosso país.

Por outro lado, a crise económica global pré-anunciada pelas crises energética, climática, financeira e bélica mundiais, vai ter seguramente efeitos catastróficos no turismo mundial.

Por fim, no caso português, à manifesta crise do respectivo modelo de desenvolvimento, que a crise sistémica global apenas poderá agravar, somam-se os efeitos imprevisíveis, mas preocupantes, da estagnação demográfica do país, onde apenas se espera um acréscimo de menos de 300 mil pessoas habitantes entre 2005 e 2050!

A solução é simples: agir com o máximo de prudência.

Dê-se prioridade aos transportes colectivos, e de entre estes, privilegiem-se os ferroviários e marítimo-fluviais. No que respeita a aeroportos, melhore-se e expanda-se até onde for tecnicamente possível o que já existe.

A Portela, que foi o quinto aeroporto europeu mais pontual em 2005, pode crescer e sobretudo melhorar a sua aparência e a sua eficácia logística. Use-se com eficácia o aeródromo de Tires se for preciso, operacionalize-se a base aérea do Montijo, potenciando harmoniosamente um grande corredor de transportes intermodal: ponte Vasco da Gama, nova travessia ferroviária e novo terminal de companhias de Low Cost.

Está na cara, e só se houver muita corrupção é que uma solução como a Ota poderá vingar.



NOTA
Depois de António Vitorino, que há muito manifestou dúvidas sobre a localização do novo Aeroporto Internacional de Lisboa (AIL), é a vez de Elisa Ferreira se distanciar, ainda que indirectamente, do pântano da Ota. Vale a pena ler:





[Novos aeroportos: Elisa Ferreira faz boas perguntas ao PS]


Por que é que o tráfego que sobrecarrega o actual aeroporto de Lisboa não é repartido com o Porto de forma a optimizar as duas infra-estruturas? Por que é que o aeroporto do Porto não se especializa em atrair as companhias "low-cost"? Por que é que, sendo o aeroporto do Porto muito mais qualificado que o de Vigo, há aparentemente mais portugueses a apanhar voos internacionais na Galiza do que galegos a fazer o inverso? Que estratégia de promoção do aeroporto do Porto está a ANA a seguir? Não seria recomendável uma autonomia relativa na gestão do aeroporto do Porto, à semelhança do reconhecido sucesso da gestão do porto de Leixões, para que algumas destas ineficiências encontrassem solução? Como irão os processos de privatização previstos influenciar a gestão desta magnífica infraestrutura? Tantas perguntas rapidamente deram lugar a outras, mais prospectivas. Havendo já sobrecapacidade instalada, continua a justificar-se o novo aeroporto da Ota? E tendo o aeroporto do Porto interface com o metro, o aumento da velocidade ferroviária da ligação Porto-Lisboa e Porto-Vigo não obrigará a rever todo este quadro? Será que a anunciada antecipação da ligação a Vigo acabará por reforçar a atractividade do Porto em relação à Galiza ou será o contrário que vai ocorrer?
— in Elisa Ferreira, Jornal de Notícias, 05/11/2006

Última hora!

OAM #151 13 NOV 2006

sábado, novembro 04, 2006

Stern Report

Global Warming 2100
img: Global Warming Art


Conseguiremos declarar o Estado de Emergência Ecológica?


O relatório elaborado pelo antigo economista do Banco Mundial, Sir Nicholas Stern, por encargo do governo inglês e sob os auspícios de Gordon Brown, veio a público a 30/10/2006, tornando-se instantaneamente assunto prioritário das principais agências noticiosas internacionais. O relatório não aporta nada que não suspeitassemos, grosso modo, desde Limits to Growth (1972), ou que não soubessemos desde a publicação de Plan B (2003-2006), de Lester R. Brown, de The Long Emergency (2005), de James Howard Kunstler e de Uma Verdade Inconveniente (2006), de Al Gore. Mas ainda assim, e apesar ser por vezes algo optimista nas soluções, tem a significativa vantagem de ser um documento criterioso, relativamente actualizado, substancial, prudente e oficial.

Algumas conclusões (retiradas pelo Herald Tribune e de uma leitura resumida do documento):

  • os países pobres e em desenvolvimento serão os mais prejudicados pelas alterações climáticas;

  • o sector energético mundial terá de se descarbonizar em 60% até 2050 (na realidade, talvez precise de uma redução bem maior e mais rápida nos países industralizados: 90% até 2030...);

  • os mercados dos produtos de baixa intensidade carbónica valerão qualquer coisa como 374 mil milhões de euros anuais em 2050;

  • a desflorestação será responsável por mais de 18% das emissões globais de gases com efeito de estufa (ultrapassando o sector de transportes);

  • os incentivos ao desenvolvimento de tecnologias de baixa intensidade carbónica deverão multiplicar por 2 a 5 vezes o montante anual actualmente dispendido, devendo chegar aos 26,9 mil milhões de euros/ano em 2050;

  • a União Europeia, a China e o Estado da Califórnia são os primeiros grandes espaços económicos e demográficos mundiais a agir face à presente Emergência Ecológica Global, prevendo-se que venham a introduzir, ao longo desta e da próxima décadas, taxas ecológicas crescentes sobre a produção, comercialização e uso de combustíveis carbónicos e sistemas destes dependentes ou acoplados:
    — transportes rodoviários, aéreos, marítimos e fluviais movidos a combustíveis fósseis (taxas s/ os combustíveis fósseis, s/ a mobilidade pendular, s/ o estacionamento, s/ a renovação dos equipamentos e veículos, etc.)
    — energia doméstica, sobretudo sistemas de ar condicionado e electrodomésticos ineficientes;
    — tratamento de resíduos (lixos domésticos e resíduos perigosos);
    — embalagens anti-ecológicas, com incorporação intensiva de energia e de materiais críticos, etc.

Tudo isto, bem entendido, se o planeta for capaz de declarar até ao fim da presente década um verdadeiro Estado de Emergência Ecológica (EEE). Se não agirmos sem demora, avisa o Relatório Stern, o planeta poderá ter que consumir 5 a 20% do PNB global para acudir à deterioração sem precedentes das condições de vida na Terra.



Notas
Para uma visita rápida ao conteúdo deste relatório, vale desde logo a pena ler a tradução portuguesa do respectivo Resumo.
A versão original e integral do Stern Report será objecto de comentário crítico assim que acabe de lê-lo.
O artigo de George Monbiot publicado pelo Guardian de 31/11/2006, Drastic action on climate change is needed now - and here's the plan adverte-nos para uma leitura crítica do Relatório Stern.
Sobre este tema, vale também a pena ler o estudo igualmente recente de Andrew J. Hoffman, Getting Ahead of the Curve: Corporate Strategies That Address Climate Change (2006), publicado pelo Pew Center on Global Change. (PDF 2.3Mb)
O Council of Foreign Relations, por sua vez, publicou este sintomático estudo sobre a situação americana: National Security Consequences of U.S. Oil Dependency

[Este artigo foi originalmente publicado no blog de O Grande Estuário]

OAM #150 04 NOV 2006

BES vai ficar de fora?


Banco Espírito Santo, outra vez na berlinda do branqueamento de capitais


O Expresso (sem cafeína), outrora editado por António José Saraiva, parece estar a resvalar para uma espécie inédita de Expresso (salgado) sob a nova batuta redatorial de Henrique Monteiro. Por sua vez, o novo Sol, do ex-director do Expresso (sem cafeína), naciturno incerto da falida imprensa nacional, parece incapaz de sobreviver fora da sombra publicitária do mesmo banco que a ambos os jornais parece oferecer rodapés coloridos das suas fantasias fiduciárias a troco da exigência de discrição sempre que a mesma for conveniente à boa imagem de quem afinal garante o pão e o Cognac deste obsoleto Quarto Poder. O velho estratagema do pau e da cenoura continua, como se vê, a produzir os seus efeitos.

Vem esta diatribe a propósito do modo infame como os dois principais semanários portugueses não trataram do caso de polícia que dominou as primeiras páginas dos jornais, rádios e televisões da península ao longo dos últimos dias. Em ambos os periódicos, a notícia das buscas policiais na sede madrilena e demais sucursais no país vizinho do Banco Espírito Santo, do bloqueamento de contas bancárias no valor de “apenas 5,5 milhões de euros” (comunicado do BES transcrito pelo Expresso), e da indisfarçável gravidade do caso, atestada pelo simples facto de a investigação estar a ser conduzida pelo Juíz Baltazar Garzón, foi remetida para os editores dos respectivos cadernos de economia. De economia! Mas não está presumivelmente em causa a prática ou a facilitação de práticas criminosas muitíssimo graves? Não está aliás este mesmo banco a ser investigado no nosso país por suspeita de envolvimento em práticas criminosas semelhantes (onde surgem personagens tão sugestivos como Pinochet e José Eduardo dos Santos)? Ou será que já não está? E se não está, que se passou para deixar de estar? Não disse ontem o cacique da Madeira, ilha onde a sede do BES parece merecer especial curiosidade de quem (em ambos os países) tem vindo a investigar toda esta teia de corrupção, que as respostas se encontravam em Lisboa? E se ele falou verdade, que significado pode deduzir-se das suas palavras? E sobre o passado pouco edificante do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa em matéria de branqueamento de capitais relacionados com o “ouro nazi” e as célebres vendas de volfrâmio a Hitler, que disse a nossa imprensa cor-de-rosa? No fim deste artigo transcrevo dois documentos essenciais a este propósito. Por fim, que dizer da venda súbita da Portugália à empresa pública TAP? O que é que efectivamente comprámos ao BES, por intermédio de Fernando Pinto? O que é que efectivamente o BES nos vendeu, por intermédio de Fernando Pinto?

Pois bem, as primeiras páginas do Expresso e do Sol resolveram assobiar para o ar, dedicando-se ambos ao deleite de tricotar vistas e revistas cortinas de fumo sobre putativas interferências do Governo na RTP (Expresso), as supostas faltas de Carrilho às reuniões da indescritível Câmara Municipal de Lisboa e ainda os potenciais conflitos de interesses entre o ministro Mário Lino e uma empresa de consultadoria fundada pelo adjunto de um seu Secretário de Estado, o qual, já se sabia mas fingiu-se não saber, afinal abandonara tal empresa (F9 Consulting) em 2004!

Uma perguntinha simples: que vão fazer estas duas folhas paroquiais se o caso BES continuar a dar muito que falar?



Notas [actualizado em 13 Dez 2006]
A ponte Pequim-Luanda. Warwick Davies-Webb, director da Executive Research Associates, em declarações ao Público (12 Dez 2006), estabelece um novo dado sobre o papel do Grupo Espírito Santo na facilitação de negócios entre a China (ávida de petróleo e atulhada em US dólares) e a África, nomeadamente lusófona (sobretudo petrolífera), ao revelar que aquela família financeira exerce uma influência preponderante em países como Angola. Numa palestra recente o consultor sul-africano disse haver “‘ligações estratégicas’ entre Pequim e companhias e bancos portugueses com influência em países como Angola”. O analista vai mesmo ao ponto de afirmar que a CPLP e Portugal, como “pilar” da organização, “serviram para acelerar a influência da China nos países de língua portuguesa”. Finalmente, segundo Davies-Webb, “Pessoas influentes no poder confundem-se com as que estão em cargos-chave dos negócios. É uma zona cinzenta e uma situação muito complexa”... Quem não deve gostar nada desta insubordinação lusitana é o Departamento de Estado norte-americano (que divulgou as afirmações da ERA.)
Em Janeiro a ERA publicará um relatório circunstanciado sobre a corrida chinesa ao continente africano, que seguramente ajudará a perceber muitos dos movimentos subterrâneos da actual diplomacia portuguesa e das cautelas postas no relacionamento com alguns poderosos grupos financeiros portugueses particularmente activos na facilitação do estabelecimento do eixo China-África-Brasil.

“This report tracks the reasons behind China's successful rise in Africa's energy sector, once almost the exclusive preserve of Western oil companies. In the short space of six years the Chinese oil presence in Africa has gone from one isolated outpost to a spread that covers nearly half the continent.

The People's Republic of China (PRC) has embarked on an aggressive campaign to capture large parts of the African oil and gas sector. Facing accelerated oil imports by the turn of the 21st century, Chinese policymakers made a strategic decision to diversify and secure energy supplies across the globe, accentuated by the 9-11 crisis which starkly highlighted China's mismatched reliance on unstable Middle East oil supplies.

A ‘go out and buy’ strategy has seen Chinese oil companies move into Africa, Central Asia and South America to secure new energy oil supplies.

The report takes an in-depth look at their modus operandi, the role of the Chinese government in guiding the actions of Chinese oil companies, the institutional support provided to Chinese oil investments in Africa, the role of other governments in facilitating China's entry into African oil sectors, political and strategic reasons underpinning China's entry into specific African countries, and why Chinese oil companies are able to compete so successfully against their Western counterparts.

The report makes the case that Western observers of the Chinese phenomenon fail to take into account the logic underpinning the thinking of Chinese investment decisions which do not reflect market-related criteria.

Those players in the African and international oil and gas sector cannot afford to ignore the Chinese expansion in Africa, and even less to assume that pure market forces will determine who takes control of Africa's energy fields.

Report Available in January”


PS: o jornal Público de 12/12/2006 errou, afirmando que a Eskom pertence ao GES. Não, não pertence. A Eskom é tão só o maior fornecedor de energia eléctrica da Africa do Sul e é uma empresa pública!

— O jornal Expresso noticia na primeira página da sua edição de 11/11/2006 os novos desenvolvimentos da Operação Furacão, antecipando a próxima iniciativa do Ministério Público: “chamar a depor os presidentes do BES, BCP, Finibanco e BPN. (...) Ricardo Salgado, Paulo Teixeira Pinto, Costa Leite e Oliveira e Costa vão ser convocados como testemunhas, mas não está excluída a hipótese de serem constituídos arguidos — até para terem maiores direitos de defesa.”. Curioso... O facto de haver 200 sociedades no rol de suspeitos dá uma boa indicação sobre o actual informalismo do sistema bancário. Numa época em que a globalização liberal e a possibilidade de um colapso do sistema bancário internacional parecem caminhar de mãos dadas, a bagunça reinante nos redes ibéricas de fuga ao fisco, falsificação de moeda e lavagem do dinheiro (muito dinheiro!) negro resultante da droga, da prostituição e da expoliação de riquezas nacionais, sobretudo oriundas de África, faz-nos pensar sobre a verdadeira natureza de muitos dos êxitos económicos incansavelmente matraqueados pelos mcs. O Expresso não se coibiu, desta vez, de divulgar a matéria informativa chegada às suas mãos. Fica-lhe bem e fica-nos bem. Pois nenhum português gostaria de se conformar à ideia de que o principal semanário do país se havia vendido por um prato de publicidade falaciosa.
Clientes do BES em Espanha investigados por branqueamento. Diário Económico
Bloqueados más 1.500 millones de euros de cuentas de los bancos Espírito Santo y BNP. El País (2/11/2006)
— Ricardo Salgado considera o seu banco prejudicado pela actuação tendenciosa das autoridades e das agências de comunicação espanholas, em contraste, disse, com o bom acolhimento dado à banca espanhola em Portugal. Afirmou que se reservava o direito de processar os responsáveis deste incidente caso o mesmo viesse a afectar o bom nome e a boa performance do banco a que preside. Não sei se isto foi apenas mais uma ameaça aos média lusitanos (para que mantenham a calma informativa sobre este assunto), ou se pretende mesmo assustar nuestros hermanos. O caso promete! [09/11/2006]

Antecedentes históricos

Nazi Gold Report
Holocaust Assets New supplement released
(1998)
Allied Relations and Negotiations with Portugal
Beginnings of Postwar Allied Policy Toward German Looted Gold in Portugal
Both Germany and Portugal used Switzerland as an intermediary to facilitate their wartime gold transactions. When Germany needed escudos to purchase wolfram or other Portuguese goods, the Swiss National Bank would transfer gold from Reichsbank accounts to the account of the Bank of Portugal. This gold apparently went to the Reichsbank's "Escudo account" with the Bank of Portugal, which in turn credited a like amount of the escudos to two private banks, the Banco Espirito Santo and Banco Lisboa e Acores. These banks then deposited the escudo amounts to Germany's accounts with them. In 1943, almost 729 million escudos ($29 million) were reportedly transferred to Germany in this way. Sometimes the Swiss National Bank transferred the gold directly; sometimes the Bank used the German gold as credit and deposited equivalent amounts of Swiss francs, which the Portuguese used to buy Swiss goods.
Ultimately, much of this gold and currency was transported to Portugal. From 1939 to 1944 Portuguese domestic gold holdings increased by $67.5 million.
The Allies also had evidence of a significant trade outside the Bank of Portugal. One of the largest institutions involved in this unofficial trade was the Banco Espirito Santo. According to an October 1945 FEA report, the bank served as the "German financial agent for wolfram operations," regularly advancing escudos to the Germans to purchase wolfram in return for "gold and Swiss francs from the Reichsbank." In August 1944 the Allies compelled the bank to cut its ties with the Reich, but the Germans transferred their accounts to the Banco Lisboa e Acores.

Holocaust-Era Assets
A Finding Aid to Records at the National Archives at College Park, Maryland
Foreword
This finding aid had its origins in a researche's effort to determine the extent of Holocaust-Era Jewish dormant assets in Swiss banks. Recognition of the importance of the issue and the potential for additional research interest led to preparation in April 1996 of a brief (ten page) list of relevant records in the custody of the National Archives and Records Administration (NARA) at its facility in College Park, Maryland. This concise list contained information about records that seemed most pertinent to researcher interests in Swiss banks and the then soon-to-be related subject of Nazi looted gold. By the fall of 1996 an Interagency Group on Nazi Assets had been established under the leadership of Ambassador Stuart E. Eizenstat, then the Under Secretary of Commerce for International Trade and Special Envoy of the Department of State on Property Restitution in Central and Eastern Europe. This group requested compilation of a more detailed listing of NARA holdings at College Park to assist with preparation of a report on Nazi looted gold and other assets.
The subsequent 277-page finding aid was completed in March 1997 and served as an appendix to the May 7, 1997, report of the Interagency Group on Nazi Assets, prepared under the direction of William Z. Slany, The Historian, Department of State. The 212-page report was entitled U.S. and Allied Efforts to Recover and Restore Gold and Other Assets Stolen or Hidden by Germany During World War II: Preliminary Study. Both the report and the appendix were placed on the Department of State's website (http://www.state.gov) on May 7, 1997, and were made available in paper form from the United States Government Printing Office.
In conjunction with the preparation of a supplemental report to the above-mentioned report, a revised and expanded 700-page finding aid was prepared and made available in March 1998, in paper form, on site at the National Archives at College Park, Maryland, and on the United States Holocaust Memorial Museum's website (http://www.ushmm.org/assets). In June 1998 the second report, coordinated by Stuart E. Eizenstat, now Under Secretary of State for Economic, Business, and Agricultural Affairs, and prepared by William Slany, was released and made available through the United States Government Printing Office and at both the State Department and the Holocaust Museum websites. The 180-page report is entitled U.S. and Allied Wartime and Postwar Relations and Negotiations with Argentina, Portugal, Spain, Sweden, and Turkey on Looted Gold and German External Assets and U.S. Concerns About the Fate of the Wartime Ustasha Treasury.
This version of the finding aid expands on the March 1998 version to include more extensive descriptions of records relating to topics hitherto described as well records relating to art looting, European insurance companies, and slave labor. Incorporated in this edition as an appendix is a bibliography of published government and non-governmental literature of Holocaust-Era assets compiled by Lida H. Churchville, NARA's Chief Librarian.
— in Holocaust-Era Assets. A Finding Aid to Records at the National Archives at College Park, Maryland. The U.S. National Archives & Records Administration. Para encontrar as 9 referências ao antigo BESCL neste documento crucial (11484, 38814, 39842, 43513, 44398, 47032, 58561, 64599, 68607) basta procurar (find) a palavra "espirito".


OAM #149 04 NOV 2006

sexta-feira, novembro 03, 2006

Portugal e o aborto

Lennart Nilsson, Life, 1965Ovulo e espermatozoides humanos
Lennart Nilsson, Life, 1965Óvulo humano

A mão de Deus e a hipocrisia nacional


Comecemos pelo princípio: a proposta de referendo aprovada pela Assembleia da República e a que seremos chamados a votar em 11 de Fevereiro de 2007 não é sobre a liberalização do aborto, mas apenas sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas de gestação. Não sei o que levou o PS a baixar o prazo inicial de 12 semanas.

Apesar de estar em causa um processo de decisão política tipicamente democrático, a hierarquia católica não se coibe de intrometer-se onde não é chamada (1). Este não é definitivamente o seu reino, mas a velha e reaccionária Igreja portuguesa (através da sua famosa Conferência Episcopal) ameaça uma vez mais abusar das suas prerrogativas e tribunas dominicais para coagir os seus fieis e promover o escândalo em volta de um tema que só à democracia compete decidir. Fá-lo como instituição hipócrita e historicamente comprometida com o autoritarismo, a corrupção e o atraso económico e cultural do país. Fá-lo em nome de uma fé atávica sibilinamente manipulada. Fá-lo pela voz dos fariseus que administram os tristes templos da cristandade. Fá-lo sem sequer ter a humildade de reconhecer que nem tudo vai bem nos corredores sombrios da sua evidente a antiquíssima misoginia. Fá-lo sem que dela se ouça um único e sincero protesto contra quem sistematicamente promove a corrupção, a fome e a guerra no mundo. No caso das massivas carnificinas programadas de seres humanos, o verbo hipócrita dos cardeais torna-se, em nome da bíblica separação de poderes, abstracto e geral. Mas no caso do aborto, como se de uma ultima ratio essencial à vitalidade do seu poder se tratasse, a igreja católica julga ter uma palavra inalienável a dizer, por cima da legitimidade democrática instituída e contra o Estado que a subsidia generosamente. A igreja católica apostólica romana de Portugal, ao referendo do aborto, disse e votará "Não", apesar da tímida tentativa do Cardeal Patriarca de Lisboa de fazer ver que o tema não era do foro religioso. Tentará, pois, arrastar ilegitimamente a maioria dos seus fieis para o apoio ao encarceramento das mulheres que abortam(2). Talvez fosse bom começarmos por exigir à instituição paroquial lusitana a devolução dos subsídios financiados pelos nossos impostos, em razão do óbvio desvio dos objectivos e destinatários da sua esperada aplicação. Foi assim que os socialistas espanhois começaram, com sucesso, a quebrar a espinha do arqui-reaccionário poder católico espanhol.

Para alguns católicos, em nenhum caso pode uma mulher, homen ou instituição decidir sobre a vida humana intra-uterina. Desde o momento da fertilização até ao eventual nascimento de uma criança a vida humana é coisa sagrada, que só a mão invisível de Deus pode comandar. Por esta mesma ultima ratio o Vaticano opõe-se à eutanásia, mesmo nos casos de doenças incuráveis e extemamente dolorosas; opõe-se à masturbação masculina (na realidade, cada ejaculação realizada fora de um coito entre homem fértil e mulher em idade de procriação pode ser vista como um verdadeiro genocídio de 180 a 400 milhões de espermatozóides!); e opõe-se ao suicídio. Não se opõe, que eu saiba, com o mesmo vigor, à pena de morte ou à guerra, nem muito menos ao celibato dos padres. Que farão estes pobres servos de Cristo aos triliões de espermatozóides que produzem ao longo a vida? Ejaculam nos lençois e administram depois a Extrema Unção aos atarantados herois da nossa espécie?

A igreja católica continua, porém, a exaltar, ou pelo menos a tolerar, a auto-flagelação da carne e o martírio em nome da purificação e da fé. Esta religião defende, pois, a vida como um dom que só Deus pode dar e tirar, salvo se a sua própria lei ou os Estados dispuserem de outra forma! Quando benze as tropas nas vésperas e durante os grandes morticínios civis, coloniais e inter-estatais, quando assiste alegremente ao exercício criminoso, tantas vezes sanguinário e letal das ditaduras, quando "perdoa" os condenados à morte nas vésperas da execução, sem um protesto sequer contra sistema penal que autoriza o assassinato legal de seres humanos, esta igreja aceita sem indignação, sem crítica e sem remorso a mão pesada de César.

No entanto, quando está em causa dirimir os grandes dilemas da história humana, sobretudo quando dizem respeito a dramas profundos, ou à nossa intimidade biológica e antropológica, evidente na interrupção voluntária de uma gravidez, esta igreja hipócrita revela uma inacreditável frieza, insensatez, crueldade ideológica e cinismo político.

Percebo que a vida e a morte tenham sempre constituído o seu inatacado latifúndio especulativo. Mas tal como a reflexão do Papa Benedictum XVI serviu para atacar o fanatismo irracional dos extremistas islâmicos, em nome daquilo que ele chamou, e bem, a superioridade racional do Cristianismo, deveria também servir aos crentes católicos informados para saberem dirimir os conflitos éticos gerados por alguns dos mais antigos e fundamentais dilemas da vida humana na direcção da prudência histórica, mas também de uma corajosa racionalidade humanista.

Quanto aos médicos-especuladores e sirenes parlamentares que proclamam em nome da ciência a sua oposição à legalização do aborto voluntário até às dez semanas, convem dizer que não existe nenhuma verdade científica sobre este tema, mas sim várias perspectivas de abordagem, confluindo as mais recentes e razoáveis para a ideia de que, por um lado, vida humana e ser humano são filosófica e legalmente (3) duas coisas diferentes, e que, por outro, a formação da consciência, ainda que na forma mais primitiva, ou puramente neurológica, tal como o apetrechamento da vida humana para a existência pós-umbilical, nunca poderão ocorrer antes das 24-27 semanas de gestação. Há vida humana, quer dizer informação genética única (e divina na perspectiva dos crentes) no espermatozóide do homem e no óvulo da mulher, mas não há nenhum ser humano potencial até que as formas, os tecidos, os órgãos e as funções essenciais à existência independente de um ser humano tenham sido desenvolvidos no interior do corpo materno, e isto não acontece se não depois de haver actividade cerebral comprovável e capacidade de respiração autónoma. Recomendo vivamente o equilibrado artigo de Scott F. Gilbert sobre o suposto consenso científico em volta da definição de vida humana e ser humanoWhen Does Human Life Begin?

Descriminalizar o aborto voluntário até às 10 ou até às 12 semanas (4) é uma decisão lógica do ponto de vista político, humana do ponto de vista civilizacional e democrática do ponto de vista cultural. Trata-se, no fundo, de decidir sobre uma questão muito difícil, mas inadiável, usando a razão e sobretudo o conhecimento, quer dizer, o estudo contínuo e sistemático de todas as envolventes do problema. A pergunta do referendo proposta pelo PS é muitíssimo prudente, se não mesmo conservadora. Ainda assim é um passo essencial para impedir que a barbárie penal prossiga, sob os auspícios perversos da hierarquia católica, de médicos hipócritas e de uma boa dúzia de juízes impróprios num regime democrático.

A interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas deverá ser um direito responsavelmente partilhado pela mulher que aborta, pelo seu parceiro e pela comunidade. Esta última tem a obrigação científica, social e política de acompanhar de perto este tema tão sensível. Quanto ao inenarrável presidente da Ordem dos Médicos e alguns dos respectivos associados, pseudo devotos do juramento de Hipócrates (segundo o qual nenhum médico poderia exercer cirurgia...), a receita é enviá-los directamente para a medicina privada. No Estado, as regras democráticas são para cumprir!




NOTAS
1. Num panfleto distribuído pela Conferência Episcopal Portuguesa, que me chegou à caixa de correio, aduz-se como argumento fundamental para a intromissão da hierarquia católica num assunto que não lhe diz respeito (nomeadamente ao abrigo da Concordata vigente) a seguinte frase absurda: "O aborto não é uma questão política, mas de direitos fundamentais".
É caso para perguntar quem escreveu esta alarvidade conceptual? Ou que entende a arqui-reaccionária hierarquia católica portuguesa por Política? Pois não é na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração Universal dos Direitos da Criança (que os pedófilos e algumas instituições religiosas, pelos vistos, não respeitam), na Convenção da Genebra, nos Tratados de Não-Proliferação Nuclear, e nas Constituições de todos os países que as têm, que precisamente se definem, estabelecem e regulam os direitos fundamentais? E quem o faz não é precisamente a Política enquanto instância histórica, social e política da vontade dos povos? Desde o tempo de César Tibério, e nas próprias palavras atribuídas a Jesus Cristo, que este problema foi definitivamente resolvido, apesar das resistências dos fariseus de todas as religiões ao longo dos tempos. A racionalidade da Política é uma conquista lenta dos povos; as dogmáticas das religiões, quando exarcebadas (como ocorreu agora com as afirmações da besta episcopal de Bragança-Mitanda) não têm sido outra coisa que o espigão da barbárie!
2. A mulher que aborta vai presa, o mesmo sucedendo aos técnicos de saúde que procederem à intervenção. O estabelecimento que acolher o acto será multado ou encerrado. Só o inocente que ajudou com os seus espermatozóides à fecundação indesejada passa incólume nesta procissão de misoginia inquisitorial.
3. Nem o feto, nem muito menos o embrião, têm personalidade jurídica. É por isso que não se declaram óbitos dos fetos destruídos em consequência da morte acidental da mãe, nem se condena alguém que atropele fatalmente uma mulher grávida de duplo homicídio. É também por isso que um feto não pode ser tido por herdeiro, nem por acusado (por exemplo, na morte eventual da sua progenitora durante a gravidez ou no parto).
4. [31/01/07] O muito retomado argumento pelo NÃO de Marcelo Rebelo de Sousa diz que o referendo em curso não é sobre a descriminalização do acto abortivo até às 10 semanas, mas sim sobre a sua liberalização, a bem do negócio da saúde e com inevitáveis encargos suplementares e sobrecargas de serviço para um SNS abraços com o cumprimento das suas tarefas mais elementares.
Na opinião de Marcelo, seria possível descriminalizar a prática abortiva independentemente da idade do embrião (até às 8 semanas) ou do feto (depois das 8 semanas e até, digamos em abono da sua tese, à 25ª semana), não punindo as pessoas envolvidas no acto abortivo com penas de prisão, mas eventualmente (suponho eu por ele) substituindo tais penas por multas e por uma política de saúde reprodutiva adequada e com meios.
A pergunta que ele faz, sibilina,
não pode deixar de obter resposta. Grosso modo, é esta: a mulher que abortar, clandestinamente, em estabelecimento não autorizado, ou abortar à 12ª semana, continua a ser considerada uma criminosa e a incorrer em pena de prisão?
Em primeiro lugar, o referendo, ao autorizar a realização de abortos até às 10 semanas em estabelecimento legalmente autorizado, define o quadro temporal dentro do qual o Estado, por decisão dos cidadãos, pode proporcionar à mulher apoio médico, segurança e legitimidade social para interromper uma gravidez indesejada, perigosa ou impossível. A determinação temporal das 10 semanas não resulta de nenhum dictat religioso (pois vivemos num Estado laico, no qual a liberdade religiosa jamais poderá sobrepor-se à lei escrita pelos cidadãos), nem sequer de nenhuma verdade científica, objectiva e incontroversa (pois existem várias perspectivas sobre o tema), mas antes de uma ponderação razoável do conhecimento científico actualmente disponível, de uma ponderação da dimensão social do problema e sobretudo da avalição do estado de espírito da cidadania sobre esta questão difícil e sobre os dilemas que a mesma frequentemente coloca a quem tem que a enfrentar na carne.
Em segundo lugar, se o referendo legitimar a IVG até às 10 semanas, esse facto levará naturalmente o parlamento a redesenhar a lei existente sobre o aborto, podendo então, em sede própria de regulamentação, acolher a sugestão liberal e generosa de Marcelo Rebelo de Sousa.
Em terceiro lugar, se Marcelo Rebelo de Sousa votar NÃO, estará simplesmente a prejudicar o natural curso da História, que no caso irá na direcção que pretende, pois parece razoável crer que o sentido de voto da maioria civilizada deste país vai precisamente na direcção de descriminalizar o aborto (independentemente do momento em que se pratique, desde que até à 25ª semana), cuidando de praticá-lo legalmente se dentro de um intervalo considerado tolerável pelo nosso actual entendimento da natureza da vida humana (10-12 semanas), e desincentivando-o fortemente, sobretudo a partir de medidas positivas, da responsabilidade do Estado e da co-responsabilização cidadã.
Como vê Professor Marcelo, para ser coerente, deveria votar SIM! -- OAM



Gato Fedorento (no seu melhor) e o silogisma do Professor Marcelo




OAM #148 03 NOV 2006

sexta-feira, outubro 20, 2006

Angola 1

Suiça ameaça cleptocracia mundial
Bloqueados 100 milhões de dólares do presidente angolano.
Que se passa na banca portuguesa, neste como noutros casos de branqueamento de capitais?


Há dez anos que os tribunais suiços iniciaram um longo processo para bloquear os fundos depositados nos seus bancos por ditadores e políticos corruptos de todo o mundo, cujas fortunas, por vezes colossais, foram obtidas através da espoliação de bens públicos pertencentes ao povos que governam, usando para tal os mais diversos expedientes de branqueamento de capitais. O processo começou em 1986 com a devolução às Filipinas de 683 milhões de dólares roubados por Ferdinando Marcos, bem como a retenção dos restantes 356 milhões que constavam das suas contas bancárias naquele país. Prosseguiu depois com o bloqueamento das contas de Mobutu e Benazir Bhutto. Mais tarde, em 1995, viria a devolução de 1236 milhões de euros aos herdeiros das vítimas judias do nazismo. Com a melhoria dos instrumentos legais de luta contra o branqueamento de capitais, conseguida em 2003 (também em nome da luta contra o terrorismo), os processos têm vindo a acelerar-se, com resultados evidentes: 700 milhões de dólares roubados pelo ex-ditador Sani Abacha são entregues à Nigéria em 2005; dos 107 milhões de dólares depositados em contas suiças pelo chefe da polícia secreta de Fujimori, Vladimiro Montesinos, 77 milhões já regressaram ao Perú e 30 milhões estão bloqueados; os 7,7 milhões de dólares que Mobutu depositara em bancos suiços estão a caminho do Zaire; mais recentemente, foram bloqueadas as contas do presidente angolano José Eduardo dos Santos, no montante de 100 milhões de dólares. É caso para dizer que os cleptocratas deste mundo vão começar a ter que pensar duas vezes antes de espoliarem os respectivos povos. É certo que há mais paraísos fiscais no planeta, mas também é provável que o exemplo suiço contagie pelo menos a totalidade dos off-shores sediados em território da União Europeia, diminuindo assim drasticamente o espaço de manobra destas pandilhas de malfeitores governamentais.

No caso que suscitou este texto, o bloqueamento de 100 milhões de dólares depositados em contas de José Eduardo dos Santos, presidente de Angola há 27 anos, pergunta-se: que fez ele para se tornar o 10º homem mais rico do planeta (segundo a revista Forbes)? Trabalhou em quê para reunir uma fortuna calculada em 19,6 mil milhões de dólares? Se usou o poder para espoliar as riquezas do povo que governa, deixando-o a viver com menos de dois dólares diários, que devem fazer os países democráticos perante tamanho crime de lesa humanidade? Olhar para o outro lado, em nome do apetite energético? Que autoridade terão, se o fizerem, para condenar as demais ditaduras e estados falhados? Olhar para o outro lado, neste caso, não significa colaborar objectivamente com a sobre-exploração indigna do povo angolano e a manutenção de um status quo anti-democrático e corrupto que apenas serve para submeter a esmagadora maioria dos angolanos a uma espécie de domínio tribal não declarado?

Na Wikipedia lê-se:
Os habitantes de Angola são, em sua maioria, negros (90%), que vivem ao lado de 10% de brancos e mestiços. A maior parte da população negra é de origem banta, destacando-se os quimbundos, os bakongos e os chokwe-lundas, porém o grupo mais importante é o dos ovimbundos. No Sudoeste existem diversas tribos de boximanes e hotentotes. A densidade demográfica é baixa (8 habitantes por quilómetro quadrado) e o índice de urbanização não vai além de 12%. Os principais centros urbanos, além da capital, são Huambo (antiga Nova Lisboa), Lobito, Benguela, e Lubango (antiga Sá da Bandeira). Angola possui a maior taxa de fecundidade (número de filhos por mulher) e de mortalidade infantil do mundo. Apesar da riqueza do país, a sua população vive em condições de extrema pobreza, com menos de 2 dólares americanos por dia.

O recente entusiasmo que acometeu as autoridades governamentais e os poderes fáticos portugueses relativamente ao “milagre angolano” (crescimento na ordem dos 21% ao ano) merece assim maior reflexão e sobretudo alguma ética de pensamento.

Os fundos comunitários europeus aproximam-se do fim. Os portugueses, entretanto, não foram capazes de preparar o país para o futuro difícil que se aproxima. São muito pouco competitivos no contexto europeu. As suas elites políticas, empresariais e científicas são demasiadamente fracas e dependentes do estado clientelar que as alimenta e cuja irracionalidade por sua vez perpetuam irresponsavelmente, para delas se poder esperar qualquer reviravolta estratégica. Quem sabe fazer alguma coisa e não pertence ao bloco endogâmico do poder vai saindo do país para o resto de uma Europa que se alarga, suprindo necessidades crescentes de profissionais nos países mais desenvolvidos (que por sua vez começam a limitar drasticamente as imigrações ideologicamente problemáticas): Espanha, Alemanha, Luxemburgo, Suiça, Reino Unido, Holanda, Dinamarca, Noruega... No país chamado Portugal vão assim ficando os velhos, os incompetentes e preguiçosos, os indecisos, os mais fracos, os ricos, os funcionários e uma massa amorfa de infelizes agarrados ao futebol e às telenovelas, que mal imaginam a má sorte que os espera à medida que o petróleo for subindo dos 60 para 100 dólares por barril, e destes para os 150, 200 e por aí a fora...

A recente subida em flecha do petróleo e do gás natural (mas também do ouro, dos diamantes e do ferro) trouxe muitíssimo dinheiro à antiga colónia portuguesa. Seria interessante saber que efeitos esta subida teve na conta bancária do Sr. José Eduardo dos Santos. E que efeitos teve, por outro lado, nas estratégias de desenvolvimento do país. O aumento da actividade de construção já se sente no deprimido sector de obras e engenharia português. As empresas, os engenheiros e os arquitectos voam como aves sedentas de Lisboa para Luanda. É natural que o governo português, desesperado com a dívida... e com a sombra cada vez mais pesada dos espanhois pairando sobre os seus sectores económicos estratégicos, se agarre a qualquer aparente tábua de salvação. E os princípios? E a legalidade?

Se a saída do ditador angolano estiver para breve, ainda se poderá dizer que a estratégia portuguesa é, no fundo, uma estratégia para além de José Eduardo dos Santos. Mas se não for assim, e pelo contrário viermos a descobrir uma teia de relações perigosas ligando a fortuna ilegítima de José Eduardo dos Santos a interesses e instituições sediados em Lisboa (1), onde fica a coerência de Portugal? Micheline Calmy-Rey, ministra suiça dos Negócios Estrangeiros, veio lembrar a todos os europeus que tanto é ladrão o que rouba como o que fica à espreita ou cobra comissões das operações criminosas.



NOTAS

* Fonte original deste post: El País, 19 Out 2006. Link
* José Eduardo dos Santos manda refutar acusações.

1 — Em 19 de Outubro de 2005 rebenta entre nós um escândalo sobre o presumível envolvimento de vários bancos portugueses numa megafraude fiscal e branqueamento de capitais. A coisa, apesar de escancarada em todos os média, foi rapidamente abafada, deixando porém atrás de si a evidência de que Portugal é uma boa praça para operações de fraude fiscal, branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Ver este link. E este. Vale também a pena ler o relatório do Finantial Task Force sobre a luta contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, dedicado à situação actual portuguesa, publicado em Outubro de 2006, e de que destacamos esta passagem:
Adequate powers are available to investigative authorities to gather evidence and compel the production of financial records and files from financial institutions and DNFBPs. Portuguese authorities have sufficient powers to prosecute ML and TF offences; however, the structures, staffing and resources to investigate these offences are also responsible for examining a range of crimes. While legal measures are available to investigate and prosecute for ML [money laudering] or TF [terrorism financing] offences, a relatively small number of cases have been successfully prosecuted. ” — Texto integral (pdf)

Referências
In Angola, new evidence from IMF documents and elsewhere confirm previous allegations made by Global Witness that over US$1 billion per year of the country's oil revenues - about a quarter of the state's yearly income - has gone unaccounted for since 1996. Meanwhile, one in four of Angola's children die before the age of five and one million internally-displaced people remain dependent on international food aid. This report highlights the latest revelations from the ‘Angolagate’ scandal, in which political and business elites in France, Angola and elsewhere exploited the country's civil war to siphon off oil revenues. Most recently, evidence has emerged in a Swiss investigation of millions of dollars being paid to President Dos Santos himself. The government continues to seek oil-backed loans at high rates of interest which are financed through opaque and unaccountable offshore structures. A major concern exists that Angola's elite will now simply switch from wartime looting of state assets to profiteering from its reconstruction.” — in “Time for Transparency”, March, 2004. Global Witness

Os Homens do Presidente. A história devastadora das indústrias petrolíferas e bancárias na guerra privatizada de Angola. Os Homens do Presidente é o resultado de dois anos de investigações da Global Witness e apresenta uma actualização da campanha a favor de transparência total nos sectores bancário e petrolífero, dando prosseguimento às revelações iniciadas em Dezembro com o relatório Um Despertar Cru, sobre o mecanismo de saque estatal generalizado em Angola. Texto integral, PDF (2.7 Mb)

OAM #147 19 OUT 2006

sábado, outubro 14, 2006

Aeroportos 8


Easy Jet, exemplo de uma revolução inesperada...

Da tríade da Ota à nova Portela e ao NAL 21a


De acordo com o Instituto de Estudos Turísticos, as companhias de baixo custo levaram à Espanha 1,85 milhão de turistas nos primeiros meses do ano, ou 11,5% a mais do que no mesmo período em 2005. Trata-se de um avanço muito superior ao registrado pelas companhias tradicionais, cujo percentual de aumento foi de 1,4%.
(...)
As companhias de baixo custo conseguiram, em poucos anos, abocanhar uma fatia importante do mercado de vôos entre a Espanha e outros países da Europa. A EasyJet e a Ryanair responderam, no ano passado, por 23% dos passageiros, ante 6,6% em 2000.
in Universia Knowledge Wharton

Assisti no passada noite 12 de Outubro, em Alenquer, vila a 6 Km da Ota, onde o actual governo pretende construir o chamado Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), a um debate instrutivo sobre o que poderá vir a ser a principal causa da ruína política do PS por muitos anos e um gravíssimo golpe nas finanças e no prestígio de um país pobre mas honrado chamado Portugal.

Aquilo que devo explicar aos cidadãos deste país é que a decisão subscrita por José Sócrates não tem absolutamente nenhum fundamento técnico, nem por outro lado, qualquer justificação económica articulada e séria. Podemos imaginar a pressa mesquinha dos construtores civis, a toleima dos municípios locais, as manobras sibilinas da Maçonaria (e não sei se também dos famosos socialistas do Grupo de Macau), ou a larga influência do Sr. Stanley Ho e do seu projecto para a chamada Alta de Lisboa nas manobras em curso. O que não podemos aceitar é a obscuridade deste processo.

Tudo não passa, do ponto de vista da decisão de José Sócrates, de um equívoco derivado de um relatório preliminar declaradamente inconclusivo sobre impactes ambientais, sucessivamente assinado por Elisa Ferreira e João Cravinho, em razão, creio eu, de convicções estratégicas que já deduzia, mas percebi agora claramente, depois de escutar as explicações do conhecido empresário socialista Henrique Neto sobre a putativa ameaça castelhana à nossa mais querida e fundacional reserva estratégica: a costa e o oceano atlânticos.

Não vou entrar nesta questão já abordada noutro artigo neste mesmo blog, mas uma coisa é certa: a embrulhada da Ota só poderá ser esclarecida desmontando simultaneamente os argumentos do lóbi galeguista e a falta de estudos efectivos que fundamentem a putativa decisão governamental.

O Sr. Xosé Manuel Beiras, chefe do Bloco Nacionalista Galego, pelos vistos tem grande influência no nosso país! Como se a fronteira luso-espanhola não passasse também por Salamanca, Badajoz e Vila Real de Santo António. Como se a União Europeia fosse uma quimera passageira. Como se dificultando e atrasando o acesso de Madrid aos estuários do Tejo e de Setúbal servisse para algo mais do que prolongar a indigência política e empresarial dominantes e ganhar algum “tempo histórico”... até que um dia, finalmente fora da União Europeia, pelo nosso próprio pé, ou expulsos, voltassemos à condição de súbditos envergonhados do verdadeiro poder atlântico de turno. Como se, mantendo a rede ferroviária portuguesa em bitola ibérica, quando a Espanha decidiu mudar toda a sua rede para bitola europeia, ficassemos mais perto dos principais destinos das nossas exportações e dos principais mercados de onde importamos bens e serviços. Como se o atrofiamento inevitável do país, caso um novo isolacionismo pós-salazarista se viesse a sobrepor à razão e vontade natural dos portugueses, fosse defensável, e não fosse tão só a reincidência pura e simples da velhíssima ilusão galega que Afonso de Henriques teve que combater para fundar Portugal: a ilusão de que o então novíssimo poder atlântico poderia manter-se em Salamanca, Lugo, Braga, Santiago ou Porto, e não baixar, como baixou, até Lisboa. Será mesmo este cenário pueril com que sonham algumas das nossas mentes mais brilhantes? A opção absurda de construir o novo aeroporto internacional de Lisboa na Ota (quando serão as low costs e os novos foguetes ferroviários que ligarão, de meia em meia hora, o Norte e o Sul da costa atlântica ibérica) tem, para mim, o seu fraco mas primacial fundamento nesta estratégia suicida. É no rasto da sua implantação que os interesses imediatistas dos empreiteiros, dos autarcas ignorantes e dos especuladores financeiros se juntam formando uma procissão de oportunistas devotos. Se tudo correr mal, pensam, o governo que aumente os impostos para pagar as dívidas e os seus futuros créditos!

Se a questão política precisa de ser urgentemente dirimida no terreno que é o seu, quer dizer, o dos interesses geo-estratégicos de Portugal, não menos importante será promover uma verdadeira discussão sobre as questões económicas, sociais e técnicas associadas à necessidade, ou não, de construir um novo aeroporto na região de Lisboa.

Como outros têm sugerido, seria bom publicar um verdadeiro livro negro, branco ou verde, sobre o futuro dos aeroportos da região de Lisboa, no quadro de uma visão lúcida e actualizada das estratégias de transportes mais adequadas ao século XXI. A crise energética, a crise climática, as novas opções europeias e espanholas em matéria de sistemas de transportes, a emergência das companhias de "low cost", o dinamismo dos chamados "corporate jets", a concentração previsível dos transportes aéreos de bandeira e o simples facto de a população portuguesa, actualmente de 10 milhões e 495 mil habitantes, não dever esperar um acréscimo superior a 228 mil habitantes até 2050 [1], são factos novos que não fizeram parte das preocupações de quem redigiu os documentos superficiais que serviram as irreflectidas decisões governamentais. Neste caso, antes de pensarmos nas vontades corrompidas, seria bom começarmos por falar de estratégia.

Os técnicos e especialistas devem assumir as suas responsabilidades e contribuir com o seu conhecimento para este debate. O mais importante, como sempre, é a formulação de perguntas pertinentes. Eis algumas delas:

I. Faz sentido, em geral, programar novos aeroportos de raíz em Portugal?

— dados a ter em conta:

1. A evolução previsível do sector espanhol, europeu e mundial dos transportes face ao pico petrolífero (oil peak), que ou já chegou ou, na melhor das hipóteses — segundo a Halliburton — chegará em 2020...;
2. A nova prioridade espanhola, já assumida, de privilegiar o binómio ferrovia-transportes marítimos em detrimento do binómio rodovia-transportes aéreos;
3. a grave crise estrutural de Portugal: endividamento excessivo do Estado, das empresas e das famílias, peso descontrolado da máquina administrativa do Estado, escassa produção e falta de produtividade;
4. As previsões demográficas realizadas em 2005 pela ONU prevêem um acréscimo populacional de apenas 228 mil hab em 2050 (menos do que a população que se transferiu de Lisboa para os subúrbios da AML nos últimos 20 anos!);
5. O quadro económico recessivo na Europa e no resto do mundo;
6. A instabilidade geo-estratégica e militar mundial;
7. Os efeitos dramáticos das alterações climáticas em toda a Península Ibérica, conhecidos e em fase de incorporação no pensamento operacional do actual governo.

II. Os actuais aeroportos continentais não chegam?

1. Na grande Área Metropolitana de Lisboa: Portela+Figo Maduro (companhias de bandeira e low cost) e Tires (corporate-jets);
2. No Grande Porto: Francisco Sá Carneiro remodelado (voos de bandeira, low-cost e corporate-jets)
3. No Algarve: Faro (bandeira e low cost e corporate jets)

Quantificar a perda de mercado na quota de voos domésticos e europeus nos aeroportos de Lisboa (Portela e Tires) por efeito da transferência de passageiros para as linhas ferroviárias de velocidade elevada Lisboa-Madrid-resto de Espanha, Porto-Aveiro-Salamanca-resto de Espanha e Lisboa-Porto-Vigo.
Quantificar a perda de mercado na quota de voos europeus nos aeroportos de Lisboa (Portela e Tires) por efeito do crescimento dos operadores de low cost no Porto e Faro.
Quantificar a perda de mercado na quota dos voos intercontinentais no aeroporto de Lisboa por efeito do novo hub aeroportuário de Madrid.

III. E se fosse preciso um Novo Aeroporto de Lisboa, a Ota seria uma boa escolha?

1. Já em 1999 a Comissão de Avaliação do Estudo de Impacte Ambiental (CA IA) chumbou por falta de fundamentação técnica o Estudo Preliminar de Impacte Ambiental (EPIA) realizado sobre a Ota e em Rio Frio pela empresa pública NAER, Novo Aeroporto SA. No entanto, Elisa Ferreia e João Cravinho forçaram a opção Ota. Porquê?
2. Em 2000 Jorge Coelho e Pina Moura despacharam conjuntamente mais estudos sobre a Ota com base na suposta necessidade de fechar a Portela, por razões de poluição e ruído (!) — como se não houvesse mais ruído e poluição na 2ª circular; ou como se os ouvidos e os pulmões das gentes que vivem à volta da Ota fossem mais resistentes que os dos alfacinhas. Porque seria?
3. Os estudos até agora realizados consideram que nas imediações da Ota vive uma população de 3000 pessoas. Acontece que são 30 mil! Se o novo aeroporto da Ota fosse ali construído, a actual população duplicaria mesmo antes de ser inaugurado. Os argumentos sobre ruído, poluição e catástrofes aéreas caiem assim pela base...;
4. Construir uma grande plataforma aeroportuária em cima de dois rios e três ribeiras confluindo para o Tejo e formando um leito de cheia potencialmente incontrolável, sobretudo tendo em conta o consenso actual em volta dos previsíveis impactos das alterações climáticas sobre a subida do nível dos mares e os aumentos pontuais súbitos e imprevisíveis da pluviosidade, não será pura e simplesmente uma loucura de milionários? Alguma vez Bruxelas viabilizará tamanha estupidez, se for convenientemente instruída?
5. A zona prevista para o novo aeroporto sobrepõe-se, nas suas instalações e corredores aéreos, à Rede Ecológica Metropolitana do PROT-AML;
6. As remoções de terras necessárias para viabilizar qualquer projecto aeroportuário com as características pretendidas na Ota, tornarão este investimento muitíssimo mais caro que qualquer outra alternativa, por exemplo, a Sul do Tejo. Especialistas estimam mesmo um acréscimo de custos na ordem dos mil milhões de euros (200 milhões de contos!)
7. O novo aeroporto projectado não tem nenhuma possibilidade de expansão futura; e além disso, das duas pistas projectadas e possíveis, apenas uma delas servirá para descolagens e aterragens. Ou seja, o potencial de navegação aérea encontra-se à partida limitado em 25%!
8. Quando o governo fala no investimento privado na Ota não contabiliza os custos das acessibilidades, os quais poderão andar na ordem dos 500 milhões de euros (100 milhões de contos) e serão suportados pela inevitável subida dos custo de utilização da nova infra-estrutura e por mais impostos para a generalidade dos portugueses;
9. Se o aeroporto da Portela (ampliado e remodelado) continuar, por decisão dos lisboetas e manifesta viabilidade económica, quem quererá ir para a Ota?
10. As companhias de low cost estão para o transporte aéreo como os porta-contentores estão para o tráfego marítimo, i.e. chegaram à Europa em 1995, viram e venceram! O panorama do transporte aéreo local (veja-se o impacto este ano no aeroporto Sá Carneiro) e internacional vai mudar radicalmente nos próximos anos e é muito provável que a TAP desapareça ou seja pura e simplesmente aborvida pela aliança de que já faz parte...
11. E se aviões mais leves, maiores e movidos a hidrogéneo, permitirem a viabilidade do transporte aéreo de massas, sobretudo intercontinental, para lá do pico petrolífero? Neste caso, não seria prudente, como aconselham especialistas atentos, reservar, em todo o caso, uma generosa aérea a sul do Tejo para uma futura plataforma intermodal de transportes (aéreos, ferroviários, fluviais e rodoviários)? Não o fazendo, a suburbanização descontrolada e em mancha de óleo a que temos vindo a assistir nos últimos 20 anos poderá obstruir qualquer hipótese de construção de futuras infra-estruturas de transporte que permitam a Lisboa contiuar a ser uma das cidades estratégicas da Europa.

IV. Alternativas de mobilidade ao panorama caótico actual

— ferrovia, transporte marítimo, ciclovia e mobilidade pedestre
— marcha atrás imediata no plano rodoviário nacional
— reconcentração das cidades de Lisboa e Porto
— programas de sustentabilidade local dirigidos a todos os aglomerados populacionais com populações acima dos 10 mil habitantes



Notas
1 — As previsões demográficas da ONU para Portugal dizem-nos que teremos um crescimento insignificante até 2050, ano que em que a população residente no nosso país andará pelos 10 milhões 495 mil pessoas. O acréscimo populacional será assim inferior ao número de residentes que abandonaram a cidade de Lisboa, nomeadamente para as desqualificadas periferias suburbanas, entre 1981 e 2004 — nada mais nada menos do que 278.452 pessoas! Por outro lado, a Grande Lisboa tem neste momento um parque de habitações por vender na ordem das 112 mil unidades! Para quem precisa o Senhor Stanley Ho da Alta de Lisboa?! E a miragem da Ota é para quem? Parece que anda tudo doido!
Referências
Maquinistas, Transportes em debate, Rui Rodrigues — um excelente repositório de documentos sobre a problemática dos transportes em Portugal.
Alambi

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OAM #146 14 OUT 2006

Clima no Parlamento


Sistema Europeu de Informação s/ Fogos Florestais. Dia: 2006-10-14 (previsão p/ 3 dias)

Assembleia da República convida a sociedade civil a debater alterações climáticas e estratégias de mitigação


Passei a manhã e parte da tarde de 10 de Outubro de 2006 enfiado no novo auditório do parlamento português. As leis que ali se discutem são cada vez mais subsidiárias da produção seminal do Parlamento Europeu. Da transposição "in extremis" para o nosso edifício legislativo das leis de Estrasburgo tem dependido a melhoria de um país indisciplinado, onde o maior obstáculo à contemporaneidade continua a ser o elevado grau de analfabetismo funcional (fraca escolaridade básica e secundária), o péssimo hábito de depender de miraculosas mesadas externas (coisa que vem pelo menos desde o século XV e ainda não terminou...) e a persistência de um sistema de poder endogâmico irresponsável, muito dado às mordomias e à falta de ética. A ausência generalizada de civismo e o flagelo burocrático são alguns dos corolários inevitáveis destes males. Já não escarramos tanto na via pública como dantes, mas continuamos a estacionar em cima dos passeios, a obstruir as garagens e a estacionar alegremente em todas as esquinas que nos aparecem pela frente.

A promoção de uma discussão pública sobre as alterações climáticas no auditório da Assembleia da República é pois uma boa notícia. Fará parte da nova estratégia de transparência e abertura dos órgãos do poder à sociedade? Se sim, não poderei deixar de saudá-la. O tema inagural ? que fazer perante as alterações climáticas em curso? ? não poderia ser mais oportuno. O auditório encheu...

Das seis intervenções da manhã, destacaria apenas duas, pela sua concisão e relevância: a de Arturo Gonzalo Aizpiri, Secretário-Geral para a Prevenção da Contaminação e das Alterações Climáticas do ministério espanhol do ambiente, e a de Isabel Guerra, auditora de ambiente do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

O primeiro fez uma exposição muito clara sobre a estratégia espanhola para o ambiente. Retive duas ideias: que não comprometerão as suas metas económicas essenciais aos limites de emissões de CO2 decorrentes do Protoclo de Quioto (tendo já constituído uma reserva financeira para aquisição de direitos de emissão a países terceiros), mas que nem por isso deixarão de diminuir rápida e drasticamente a sua extrema dependência energética dos combustíveis fósseis importados (85%). Para tal, a Espanha levará a cabo uma profunda revolução no sistema de transportes, tendo em vista diminuir a importância dos transportes rodoviários e aéreos relativamente à ferrovia e aos transportes marítimos, promovendo, por outro lado, um conjunto de medidas destinadas a mitigar decididamente a dependência do consumo energético de origem carbónica por parte dos chamados "sectores difusos" (transportes, edifícios e sector terciário). Paineis solares térmicos e fotovoltaicos serão generalizados de forma apoiada, mas imperativa, ao longo desta e da próxima década em todas as cidades espanholas.

Maria Isabel Guerra deu conta do Programa Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC, 2006), destacando não apenas alguns aspectos essenciais do diagnóstico e das medidas a implementar, mas ainda, o que não deixa de ser particularmente relevante, a sua característica inter-ministerial e ainda o facto de ter sido implementada uma metodologia de controlo e verificação de resultados.

Finalmente no plano das visões mais acutilantes, críticas e propositivas deste encontro destacaria a notabilíssima intervenção do Prof. Eduardo Oliveira Fernandes (Responsável da Unidade de Estudos Avançados de Energia no Ambiente Construído, da Universidade do Porto), e a militância quase colérica de Carlos Pimenta. O primeiro, não apenas mostrou até que ponto a nossa extrema dependência energética do exterior e das energias de origem fóssil é um factor de grande insegurança nacional, como sublinhou ainda o muito que há fazer no campo da eficiência energética (os chamados negawatts), antes de nos deixarmos levar pelo canto das sereias nucleares e das OPAs. 60% da energia transportada perde-se no labirinto da ineficiência energética, da falta de visão económica e da incompetência política (as palavras são minhas)... O segundo, foi sobretudo corajoso na defesa da necessidade de construir a barragem do Sabor como medida de precaução extrema absolutamente defensável na perspectiva da defesa estratégica da bacia do Douro (objectivamente ameaçada pelas medidas de salvaguarda hidrológica implementadas e em fase de implementação pelos espanhóis na parte que lhes pertence do rio comum).

Não ouvi as primeiras intervenções da tarde. Mas ouvi as que encerraram o encontro. Nota triste: a lenga-lenga dos deputados que ali aterraram para exibirem os respectivos leques partidários, sem que nada de substancial saísse daquelas mentes de eleição (talvez na próxima vez tragam a lição estudada e nos dêem a conhecer quais são efectivamente as posições dos partidos sobre questões tão importantes como as que neste primeiro encontro foram discutidas). Nota feliz: não esperava de Jaime Gama, o presidente da Assembleia da República, uma intervenção tão lúcida sobre o mérito da conferência, e em particular a sua plena consciência dos efeitos devastadores que as alterações climáticas, se não forem mitigadas, poderão ter sobre a nossa própria sobrevivência como país, nação e estado. Subestimei-o.

Resumindo: há uma boa percepção técnica dos problemas; sabe-se que os interesses cegos, egoístas e irresponsáveis do sector estão em pleno movimento browniano, mas desconhece-se se há pensamento económico sobre o assunto; ou se os políticos (nomeadamente este governo) terão a coragem de agir atempadamente e defendendo em primeiro lugar o interesse nacional. O sucesso da União Europeia depende e muito de três tipos de dialécticas: a que vai de cima para baixo (do geral para o particular); a que vai de baixo para cima (do particular, i.e. do estado-nação, da cidade, da freguesia, para o geral) e a que se desenvolve segundo a topologia das redes rizomáticas. Muito em breve a lógica "top down" actualmente hegemónica (e estúpida) do sector energético dará lugar a uma rebelião sem precedentes das novas matrizes de produção e partilha energética à semelhança do que ocorreu na tecnosfera da redes informáticas. Em 1994 tentei avisar um dos patrões lusitanos da comunicação social sobre o tremendo abalo que a sua indústria iria sofrer. Disse-lhe que a webcast iria comer literalmente o broadcast. Ele não me ligou nenhuma. Os resultados estão à vista e ainda vão piorar, para ele, claro! Basta meditar nos 1300 milhões de euros desembolsados anteontem pela Google para adquirir a You Tube , uma empresa web criada em 2005 para partilhar vídeos à escala global. Pois bem, o aviso aos distraídos do sector energético é este: esqueçam a ideia de controlo e comecem rapidamente a pensar em rizomas energéticos livres e cooperantes. Se não o fizerem, acreditem, serão comidos, literalmente, pelos rizomas mini, micro e nanotecnológicos em gestação... em menos de década e meia!

OAM #145 11 OUT 2006 [originalmelmente publicado no blog de O Grande Estuário

sexta-feira, outubro 06, 2006

Plano B

img from Al Gore's Unconvenient Truth

Verdades inconvenientes. Posturas de avestruz


Quando ouvimos as notícias sobre a performance económica europeia de 2006 (a melhor dos últimos cinco anos) e as imparáveis subidas na bolsa espanhola, ou sobre o frenezim especulativo em torno das OPAs lusitanas que anima a maioria dos canais televisivos, ficamos na dúvida se há ou não uma crise económica de magnitude global a caminho, se as alterações climáticas ameaçam de facto boa parte das regiões do planeta, e se, por conseguinte, o que nos espera, num intervalo de expectativa que não irá além de uma década ou duas, é mesmo uma tragédia de proporções bíblicas, ou outra coisa qualquer, com a qual talvez não valha a pena preocuparmo-nos...

Se tudo vai bem no reino da Dinamarca, isso significa que estamos a passar um atestado de incompetência a centenas ou mesmo milhares de cientistas que nos dizem o contrário. Se o que aí vem é, afinal, mais crescimento ilimitado, mais empolamento especulativo dos mercados financeiros, mais corrupção, cada vez menos redistribuição de riqueza, mais desemprego mundial, a impossibilidade de produzir e criar fora dos campos da concentração capitalista global, mais e mais precoce depressão juvenil, mais fluxos migratórios desesperados, milhões de velhos entregues à solidão e à demência, mais terrorismo e mais terrorismo de estado, maiores paranóias securitárias, e o crescimento subreptício mas imparável do sedutor fascismo mediático, então sim, de nada valeu a racionalidade dos avisos, porque deixámos a inércia atarantada do nosso comportamento colectivo sobrepor-se ao instinto de sobrevivência da espécie.

Fui recentemente ver Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore e Davis Guggenheim. Sobre quem não está familiarizado com estes temas, provocará certamente um impacto muito forte. O que ali se evidencia não é nenhuma ficção científica de fim-de-semana! Em breve sairá a tradução portuguesa do livro com o mesmo título, no qual se plasma uma série de conclusões muito sérias sobre o que nos poderá acontecer a todos, ou à geração dos nossos filhos, se nada fizermos nos próximos dez anos. Dez anos?! Será que ainda iremos a tempo? Não sei. Mas sei que quem não estiver bêbado, nem for uma couve, deve ir ver este filme quanto antes, e já agora ler o Plano B de Lester R. Brown (2006), que acaba de ser traduzido para o nosso idioma e será publicamente apresentado em Trancoso no dia 27 de Outubro, no decurso do Encontro Internacional do Tribunal Europeu do Ambiente 2006, subordinado ao tema As Origens do Futuro. Uma comunicação via Skype trará Lester R. Brown até Trancoso.

Se algo me animou no filme de Al Gore foi ter visto ali definido um novo perfil de político. Ao invés de um ventríloco atrelado às sondagens, de um pagador de promessas e dívidas eleitorais, de um mentiroso compulsivo, de um amoral profissional, em suma de um soldado da vã glória de mandar, propenso à corrupção, deparamo-nos com um lutador incessante: mais de mil comícios pelo país e no mundo explicando os problemas sérios que temos pela frente a uma escala até há pouco inimaginável. Uma razão clara para o combate político, uma alternativa credível no seu próprio partido (o Partido Democrata), uma resposta sublime à imundície e ao descalabro da seita dos Bush, uma voz necessária num mundo à beira do precipício ecológico e nuclear.

No prefácio que escrevi para edição portuguesa de Plan B 2.0, a qual terá em breve uma versão electrónica disponível na Net, fiz alguns alertas que aqui antecipo à laia de convite à leitura integral deste livro absolutamente obrigatório.

Futuro anterior

Foi depois de ler, em 2002, "Beyond the Limits" (1992), de Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows e Jørgen Randers, os mesmos que em 1972 publicaram "Limits to Growth" sob o patrocínio do Clube de Roma, cuja edição actualizada viria a ler em 2004, que o meu espírito entrou em alerta laranja relativamente aos horizontes do nosso futuro colectivo. As leituras sobre este tema sucederam-se e não pararam mais: o célebre e premonitório relatório de M. King Hubbert — "Nuclear Energy and Fossil Fuels" (1956), "The Long Emergency", de James Howard Kunstler (2005), "Peaking of World Oil Production: Impacts, Mitigation and Risk Management", de Robert L. Hirsch (2005), "Collapse", de Jared Diamond (2005) e "Plan B 2.0", de Lester R. Brown (2006)...

Calcula-se que a população mundial crescerá em 200 anos (1850-2050), período que corresponde grosso modo à duração da era industrial, de 1,26 para cerca de 9,1 mil milhões de habitantes. Esta explosão demográfica, que acabará inevitavelmente por regredir, entrou a partir da década de 70 do século 20 num quadro ecológico ameaçado pela escassez de vários factores essenciais à sua própria curva de crescimento: água potável, água para regar os cultivos destinados à alimentação (mas também à produção de bio-combustíveis!), terra arável, combustíveis fósseis baratos (carvão, petróleo, gás natural) e boa parte dos metais que alimentaram até hoje o nosso hiper-desenvolvimento: ferro, cobre, alumínio, níquel, estanho, zinco, prata, platina e ouro. Por outro lado, o crescimento actual gera uma poluição letal, sobretudo nos países emergentes e em vias de desenvolvimento, de que a tonelagem de resíduos tóxicos dificilmente recicláveis e as emissões de carbono para a atmosfera são dois alarmantes indicadores. Do ponto de vista do paradigma actual do desenvolvimento (crescimento contínuo do PIB, concentração financeira e globalização), estamos mergulhados numa crise energética e num dilema sem precedentes.

As energias renováveis de que se tem falado muito ultimamente (eólica e solar) são caras, tendo um EROEI ("Energy Return On Energy Invested") relativamente baixo, ou mesmo negativo, razão pela qual têm dependido de subsídios estatais em todo o mundo. O mais provável é que estes custos venham a ser suportados pelo consumidor através de adicionais às facturas que lhe são apresentadas. Por outro lado, o aumento da procura e a diminuição/encarecimento das reservas de combustíveis fósseis (sobretudo líquidos), não só elevará os respectivos custos, como continuará a repercutir este encarecimento nos custos de produção das próprias energias e combustíveis alternativos, deitando por terra a possibilidade de encontrarmos uma alternativa efectiva (em termos de quantidade, qualidade, potencial, versatilidade e preço) ao uso do petróleo, do gás natural e das centrais hídricas e nucleares na produção de energia. Não nos esqueçamos que 50-60% do petróleo consumido no mundo vai direitinho para o sector dos transportes. Seja como for, pela via da expansão das energias renováveis, complementando, mas nunca substituindo, pelo menos para já, as não-renováveis, assistiremos a um aumento acentuado e contínuo do preço dos combustíveis, sejam eles quais forem. A consequência deste aumento progressivo do preço da energia será a inflação e o aumento das taxas de juro em todo o mundo. A que se seguirá inevitavelmente a destruição de muitas economias nacionais e privadas, decréscimos dramáticos do consumo e do emprego e, finalmente, uma diminuição acentuada da procura de energia. Só não sabemos quanto é que tudo isto vai custar em vidas humanas.

No outro extremo do dilema temos a criação e desenvolvimento de novas modalidades de energia nuclear: reactores de quarta geração (Gen IV), cujas primeiras versões comerciais poderão funcionar a partir de 2030, e centrais de fusão nuclear, cujo primeiro reactor experimental deverá prestar provas em 2016. Tudo somado, pode dizer-se que uma nova alternativa nuclear, mais segura e de altíssimo rendimento, poderia começar a substituir as actuais centrais nucleares a partir de 2050, perfilando-se assim esta forma de energia hiper-tecnológica como o elo de continuidade entre a civilização carbónica e a civilização nuclear. Sucede, porém, que esta alternativa, em vez de empurrar a humanidade para uma espécie de idade média tecnológica, corre o risco de acelerar ainda mais o processo de exaustão dos recursos disponíveis, a não ser que até lá consigamos resolver o problema demográfico (sobretudo em África e na Ásia), o problema da fome e o problema da poluição, revertendo de vez o paradigma económico actual. Por fim, no que à alternativa nuclear (GEN IV e de fusão) se refere, apenas produzirá electricidade, não resolvendo o problema da infinidade de produtos derivados do petróleo e do gás natural absolutamente essenciais ao actual estilo de vida dos países: combustíveis líquidos, plásticos, pesticidas e fertilizantes, tintas, vernizes, decapantes e remédios, entre outros.

Para além da emergência energética que acabamos de descrever sumariamente, num tom mais dramático que o de Plano B 2.0 (que é antes de mais um desafio à criatividade e uma aposta na sobrevivência da nossa civilização), as alterações climáticas que têm vindo a ser detectadas pela esmagadora maioria dos observadores científicos de todo o mundo ameaçam lançar a Terra num período de aquecimento global/arrefecimento local catastrófico. A possibilidade de um colapso da civilização, precedido de crises energéticas e alimentares agudas, de crises sociais gravíssimas, de crises militares brutais, de uma recessão económica mundial de longa duração, da queda em dominó dos sistemas financeiros e da paralisia de boa parte das cidades e redes urbanas existentes deixou de ser um cenário de ficção cinematográfica. Todos os ingredientes da tragédia estão já no terreno. Haverá um Plano B?

O livro de Lester R. Brown é uma excelente e urgente resposta a esta pergunta. Por isso recomendei a sua tradução para português ao Emanuel Dimas de Melo Pimenta, assim que aceitei colaborar com ele na organização do Tribunal Europeu do Ambiente, que terá lugar em Trancoso no mês de Outubro de 2006.



Download gratuito do livro PLANO B 2.0, de Lester Brown (em Português):
— no sítio web d'o Grande Estuário (PDF/ficheiro ZIP: 1,5Mb)
— secção de downloads do Portal de Trancoso, em www.portaldetrancoso.net

OAM #144 06 OUT 2006