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domingo, agosto 22, 2010

Portugal: 1415-2015

Castelo São Jorge da Mina, Gana (mandado construir por D. João II, ca.1486)

O fim de um ciclo muito longo

O impasse actual do nosso regime democrático não resulta apenas, nem sobretudo, da corrupção que alastra sem vergonha nem punição, da incompetência quase demencial dos partidos, da esfinge inútil colocada na presidência da república, da overdose alucinogénica do euro, nem sequer da tradicional indolência de um povo que sempre preferiu emigrar antes de explodir ou escolher um tirano iluminado. O que começa de facto a pesar sobre a integridade e definição do meu país é o fim dum ciclo de 600 anos de sustentação e equilíbrios de poder. O que porventura já começou é um colapso histórico sem precedentes cuja mitigação exige muito mais do que o actual regime é capaz de dar.

Este ciclo de vida nacional é, resumindo, aquele que medeia entre a consolidação da nossa fronteira ibérica e a exaustão dos recursos estratégicos que lhe deram sustentação a partir da aliança firmada entre John of Gaunt, primeiro Duke of Lancaster, e João I de Portugal (1). A formação do império colonial português, um dos mais extensos e duradouros de quantos houve, começou verdadeiramente nesta aliança que, por outro lado, viria a contribuir decisivamente para resolver, até hoje, o problema do bloqueio muçulmano do Mediterrâneo. Só as potências atlânticas, antes e depois da colonização das Américas, estavam e continuam a estar em posição de compensar os cortes de comunicações, por terra ou pelo Mediterrâneo, entre o Ocidente e o Oriente. O posicionamento de charneira do Islão, entre o Oriente e o Ocidente, foi também a sua maior fraqueza. Ficou por outro lado claro, desde a Reforma Luterana, que a Alemanha, pela sua interioridade continental, nunca foi capaz, nem poderá sê-lo no futuro, de chamar a si o centro de gravidade da força estratégica necessária à preservação da cultura greco-latina sobre a qual assenta o essencial da identidade civilizacional do Ocidente.

O império colonial português teve início na conquista de Ceuta em 1415, no ano da morte da rainha —a inglesa Filipa de Lencastre— que tudo fez para que o grande projecto atlântico europeu tivesse lugar. A falta de conhecimentos de economia e de estratégia da esmagadora maioria dos nossos historiadores tem infelizmente gerado uma cortina de enganos e ilusões sobre as origens e causas efectivas da persistência de uma nação com quase 900 anos, mas cuja sobrevivência parece agora condenada à inexorável dissolução numa união europeia de destino incerto. Portugal levou apenas 50 anos a definir as suas fronteiras, teve o primeiro grande sobressalto com Castela em 1385 (Batalha de Aljubarrota), ficou sob domínio castelhano durante 60 anos (1580-1640), e hoje, depois de se ter retirado de todas as antigas colónias e concessões, tem pela frente um novo e fundamental problema de definição e sustentação estratégica. Como travar a velha Castela, agora uma monarquia decadente à beira da desintegração, na sua incansável perseguição da preciosa porta atlântica: Lisboa? Tudo dependerá, pelo menos em parte, da nova e urgente triangulação estratégica que Portugal deverá estabelecer com o Brasil e Angola, no quadro de um posicionamento diplomático tão independente quanto possível —honest broker—, que é de nossa estrita conveniência adoptar na esfera da nova globalização que previsivelmente sucederá àquela que neste preciso momento implode com estrondo.

O problema é ainda mais sério, como se vê, do que teme Medina Carreira, e do que afirmam os recém convertidos economistas portugueses ao problema do nosso galopante endividamento —externo, público e privado. A aposta de Mário Soares na União Europeia foi seguramente o passo mais acertado da política portuguesa depois de uma inevitável, dolorosa e trapalhona descolonização. Mas se a União Europeia colapsar, por exemplo, na sequência de uma guerra nuclear no Médio Oriente, onde ficaremos perante uma Espanha que em menos de uma década ou duas poderá mergulhar num explosivo processo de desintegração? Terá Madrid, outra vez, a tentação de invadir Portugal? A Espanha detém cerca de 1/3 da nossa dívida externa (ver gráfico) e, por outro lado, Portugal encontra-se de facto em situação de pré-bancarrota. A probabilidade de até 2015 ser inevitável declará-la, ou, não a declarando (porque é humilhante), proceder-se à sua reestruturação é muito alta (2).

As guerras são sempre muito caras. Pela sua duração (1337-1453) e pelo que estava em causa, saber se a França e o Reino Unido poderiam ser um só país europeu, a Guerra dos Cem Anos foi seguramente uma das que mais custaram aos bolsos dos contribuintes de ambos os lados do Canal da Mancha. Uma das provas de que a deterioração da balança comercial inglesa foi uma coisa séria é, por um lado, a progressiva substituição da prata pelo ouro como metal financeiro, e por outro, a subida de valor deste ao longo da guerra (3).

Reparemos de novo nas datas:
  • em 1337 começa a guerra pela sucessão ao trono francês desencadeada pelo rei Edward III de Inglaterra, a qual duraria 23 anos (até 1360); 
  • sete anos depois, em 1344, começa a circular o Noble, a primeira moeda de ouro inglesa com efectivo valor monetário; 
  • entre 1373-1386 é estabelecida a aliança estratégica entre Inglaterra e Portugal, havendo que destacar aqui a contribuição das tropas inglesas para a derrota de Castela (que contava com tropas aliadas aragonesas, francesas e italianas) na decisiva Batalha de Aljubarrota, e o casamento de Filipa de Lencastre, irmã do futuro rei inglês Henrique IV, com o rei de Portugal, João I; 
  • em 1415, ano da morte da rainha portuguesa e mãe da chamada Ínclita Geração (Duarte, Pedro, Henrique, Isabel, João e Fernando), João I com os filhos príncipes e as suas tropas, auxiliados por soldados ingleses, galegos e biscainhos, tomam a cidade muçulmana de Ceuta, dando início, não a uma expansão pelo Mediterrâneo, como alvitraram António Sérgio e Vitorino Magalhães Godinho, mas sim pela costa ocidental de África, em demanda do ouro que comerciantes nómadas do deserto há muito faziam chegar a Marrocos e daqui à Europa (4).
Sem o ouro da Guiné (donde o nome da moeda inglesa guinéu), a sorte da Guerra dos Cem Anos teria sido provavelmente outra, bem como o destino de Portugal e da mais antiga aliança estratégica entre dois países.

1415 é não apenas a data do início da grande expansão marítima europeia, iniciada pelo estado português, e a que rapidamente se juntaram outras nações europeias, mas também, por assim dizer, o ano de colapso da grande marinha comercial e militar chinesa por ordem de um imperador assustado com a pressão mongol a Norte da China. A circum-navegação do império Otomano e o colapso da expansão chinesa no Índico permitiram a uma Europa que rapidamente se desenvolvia, alavancada pelo nascente sistema financeiro, uma acumulação de riqueza sem precedentes, entre outras razões porque lhe foi quase sempre possível impor aos outros povos os termos de troca, e nalguns casos mesmo a pilhagem pura e simples, em virtude da sua superioridade militar e sofisticação cultural. Sem o ouro, sem os escravos, sem as especiarias, sem as sedas e pedras preciosas, sem chá, nem café, nem tabaco, sem o açúcar, o milho, ou a batata, que teria sido dos europeus? Ora bem, a descolonização mundial e a OPEP vieram mudar toda esta longa e frequentemente sanguinária safra!

A mais justa redistribuição dos recursos disponíveis por uma humanidade que entrara numa curva de crescimento demográfico exponencial é uma condição irrecusável do mundo actual, sobretudo à medida que novos países emergem da sua antiga condição de menoridade e começam a impor de facto condições às velhas potências dominantes. O embaraço conjunto dos Estados Unidos e da Europa perante as exigências crescentes dos grandes detentores de recursos energéticos, minerais, alimentares e laborais do planeta, já para não sublinhar o poder financeiro extraordinário que têm hoje países como a China, são sinais evidentes de que um longo ciclo civilizacional chegou ao fim.

No caso de Portugal a equação é simples: onde estão o ouro, o algodão, as especiarias, as sedas, o café, as madeiras extraordinárias, o petróleo e os diamantes que alimentaram seis séculos de prosperidade relativa, e sobretudo um certo estilo de improvisação social e institucional? Mais, onde está a mão de obra barata que outrora permitiu disfarçar a nossa falta de organização e de ciência? Alguém se deu já ao trabalho de calcular o nosso actual potencial produtivo e de poupança tendo em conta os recursos objectivamente disponíveis. Que modelo de desenvolvimento poderemos no futuro efectivamente suportar e garantir sem cairmos numa qualquer forma de escravidão?

É por termos fechado um ciclo muito longo de modelo civilizacional que não faz qualquer sentido reduzir os desafios que temos pela frente às actuais querelas partidárias. A insanidade actual dos partidos políticos portugueses é mais um sintoma do grande colapso que se aproxima, do que a sua causa eficiente. Acantonar a discussão necessária dos problemas no pingue-pongue entre o pobre Sócrates e o atordoado Passos de Coelho sobre se é preciso subir impostos ou cortar despesas é uma criminosa perda de tempo. No imediato, é evidente que são necessárias medidas imediatas de contenção da hemorragia financeira que em breve levará o país ao prego. Terão que subir e muito alguns impostos (por exemplo, o IVA), e terão que encerrar todos os serviços públicos redundantes ou que não traduzam a realização duma missão imprescindível do Estado (surgindo daí novas oportunidades para os sectores empresarial e cooperativo.) Ao mesmo tempo que estas decisões drásticas e difíceis são tomadas, medidas claras de moralização e justiça devem igualmente ser adoptadas, a começar pela eliminação dos escandalosos privilégios de que goza a casta incompetente dos políticos.

Mas uma verdadeira resposta à crise exige o enquadramento das análises, dos cenários e das soluções, à luz duma visão global dos problemas. Porque é de globalização que estamos efectivamente a falar, desde 1415!

NOTAS
  1.  Em 1373 foi assinado o Pacto de Tagilde, e em 1386 celebrou-se o Tratado de Windsor, ambos fazendo parte daquilo que se chama a Aliança Luso-Britânica. A última vez que a Aliança foi invocada ocorreu em 1982, durante a Guerra das Malvinas (ou Falklands), para uso das facilidades aeroportuárias dos Açores, por sua vez obtidas pelos aliados anglo-americanos por iniciativa de Winston Churchill, em 1942.
    "I have an announcement", I said, "to make to the House arising out the treaty signed between this country and Portugal in the year 1373 between His Majesty King Edward III and King Ferdinand and Queen Eleanor of Portugal." I spoke in a level voice, and made a pause to allow the House to take in the date, 1373. As this soaked in there was something like a gasp. I do not suppose any such continuity of relations between two Powers has ever been, or will ever be, set forth in the ordinary day-to-day work of British diplomacy — Winston Churchill, Second World War, pp 146-7. Wikipedia.
  2. "O grupo de países designados pejorativamente por PIIGS (acrónimo humorístico para Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) viu as probabilidades de incumprimento da dívida soberana dos seus membros num horizonte de cinco anos aumentar significativamente esta semana, de acordo com o monitor da CMA DataVision." — in Expresso, 28 Ago 2010.
  3. O esforço de guerra britânico em compra de alianças, custos da interdição de exportações de lã para a Flandres, e outros desequilíbrios na balança comercial, pressionaria a necessidade de cobrir os défices com pagamentos em moeda metálica. Quanto mais valiosa fosse a moeda metálica, menos metal teria que ser exportado e menos caras seriam também as operações de transporte do metal precioso. Daí a necessidade de substituir a prata pelo ouro. Foi isso que os monarcas ingleses começaram a fazer, apesar das várias tentativas falhadas e resistência interna pouco depois de iniciado o ciclo de guerras que viria a ser conhecida por Guerra dos Cem Anos. Por causa dos óbvios efeitos inflacionistas causados por uma nova moeda forte —o mesmíssimo fenómeno que ocorreu entre nós com a introdução do euro— os preços subiram, incluindo, claro está, o preço do ouro! Datam de 1252 as primeiras tentativas (Gold penny) de introduzir moedas de ouro em Inglaterra, mas foi em 1334, isto é, três anos antes da primeira guerra entre ingleses e franceses, a chamada Edwardian War (1337-1360), que a primeira moeda de ouro começou efectivamente a circular em terras britânicas. Chamava-se Noble, teve 4 cunhagens e durou até ser substituído em 1465 pelo famoso Angel (1465-1663), que por sua vez daria lugar ao Guinea (1663-1813). Um Noble pesava 138,5 gr, entre 1344 e 1346; 128,5 gr, entre 1346 e 1351; 120 gr., entre 1351 e 1377. O impacto da guerra na necessidade de obter ouro não poderia ser mais evidente.
  4. Dois motivos principais aconselharam em 1373-1386 a aliança entre ingleses e portugueses: um foi o facto de o acesso ao ouro do Oriente e de África, essencial para suportar os custos da Guerra dos Cem Anos, depender do acesso ao Mediterrâneo, fosse para chegar ao Norte de África, fosse para caminhar em direcção ao Oriente por terra, o que implicaria a impossível autorização da França, com quem a Grã Bretanha iniciara uma grande guerra; o outro, foi o conhecimento de que o Golfo da Guiné, sobretudo no actual Gana, dispunha de grandes recursos em ouro e escravos —duas componentes imprescindíveis ao modelo de crescimento económico que se perfilava no horizonte. Ceuta fica em frente a Gibraltar, então sob soberania castelhana, pelo que são posicionamentos estratégicos no controlo das entradas e saídas do Mediterrâneo. Hoje Espanha controla (vamos a ver por mais quantos anos) a outrora praça forte portuguesa de Ceuta. Não é pois por acaso que o Reino Unido não larga Gibraltar desde que teve oportunidade de deitar-lhe mão, em 1704, no decurso da Guerra de Sucessão Espanhola. Poder-se-à perguntar porque é que os povos mediterrânicos se não aventuraram há mais tempo na exploração da costa atlântica de África, tendo deixado aos portugueses o privilégio da iniciativa. Por incrível que pareça há uma razão geológica de fundo: as correntes superficiais do Atlântico entram pelo Mediterrâneo adentro a uma velocidade de 3 nós, causando inúmeros perigos à navegação entre os dois mares, precisamente no socalco submarino existente ao longo de todo o estreito de Gibraltar. O Mediterrâneo é um mar quente que evapora mais depressa do que o Atlântico, ficando por isso e ciclicamente abaixo do nível deste. Pelo princípio dos vasos comunicantes o Atlântico é assim levado a invadir o Mediterrâneo com gigantescas massa de água deslocando-se a três milhas náuticas por hora — o que é muito, se considerarmos que as caravelas atingiam então velocidades médias inferiores a 12 milhas náuticas por hora.

Última actualização: 29 Agosto 2010